sexta-feira, 17 de novembro de 2023

Considerações sobre Panapaná

 

BERNARDES, Erick. Panapaná: contos sombrios. 1ª ed. Rio de Janeiro: Autografia, 2018, 94 páginas. ISBN: 978-85-518-1018-7.

 

Considerações sobre Panapaná

 

A função da arte é comover. Quadro, escultura, sinfonia, poema ⸺ tudo isso é manifestação artística destinada a provocar emoção: quanto mais comover, tanto mais autêntica obra de arte será. A arte não deve transmitir mensagem, a não ser por mero acaso, por mera coincidência.

No campo da palavra escrita, a redação INFORMA e a literatura COMOVE. A poesia, mais do que a prosa, deve comover pois se não fizer isto, não chega a ser poesia.

 

(Paratexto da contracapa de Simbologia do Onírico, de Diógenes Magalhães.)

 

         Prezado Erick:

           

            Peço mil perdões por só ter começado a ler o seu livro de contos em dezembro de 2022. Você me deu um exemplar de presente há quatro anos (a não ser que, mesmo com as vacas magras, eu o tenha comprado), antes de eu me mudar para o Espírito Santo (terra de um político tão danoso para o avanço do país quanto o defunto Atanásio de Oliveira, do conto Olhos), e no entanto eu não demonstrei a delicadeza de analisar sua prosa.

            Acredito que a maioria das impressões que vou registrar aqui sobre o homônimo conto de abertura do seu Panapaná valha para a maioria dos outros, que, assim como o primeiro, exploram temas sombrios, muito encontradiços na literatura e nas outras artes góticas[1].

            No que concerne ao conteúdo, pode-se dizer que, pelo menos na primeira leitura, naquela fase de interpretação mais imediata, o tema central (o referente) do primeiro conto é a decomposição da carne e da matéria. O macabro e a morbidez geram um cenário muito, muito tétrico. Os que consideram isso de mau gosto fariam a você críticas análogas àquelas que foram dispensadas à obra do autor do Eu, e isso porque o “mau gosto de Augusto dos Anjos funciona normalmente na sua poética de recursos tensos” (CÂNDIDO apud BARBOSA, 2010, p. 84-5). Estou, sabemos bem, categoricamente desfiliado de qualquer corrente que condene o poeta paraibano (que, aliás, lia Edgar Allan Poe).

            Confesso que o conto de abertura acabou (por assim dizer) conquistando a minha simpatia por causa do nome do personagem central: Edgar. Em tese (e só em tese), não combina nem um pouco com as cores locais do Maranhão (estado brasileiro em que, aliás, nunca estive), mas, no Brasil, um país com tantos nomes estrangeiros e filmes ianques exibidos à exaustão, podemos aceitar a máxima de Pero Vaz de Caminha de que, em se plantando, tudo dá no Brasil: “a terra é tão boa... Sim, de um modo que era quase uma maldição” (VERÍSSIMO, 1996, p. 21). Para ser honesto, devo dizer que não me importo com cores locais: desde que saí do estado do Rio para me sentir um estranho em qualquer parte do mundo, tenho me preocupado com o que é universalmente belo e bom (e também com o que é universalmente feio e grotesco), e isso, é claro, condiciona meus planos de curso (os conteúdos programáticos), sem os quais não é possível proporcionar uma digna educação linguística e literária.

            O Edgar do conto Panapaná não está numa aventura, e o final é confuso. Fiquei incomodado com isso: ou eu deixei escapar algum elemento por falta de conhecimento prévio, ou o autor deixou que o leitor imaginasse o final e uma explicação para o desfecho. É como se aquele vendesse a este um aparelho com peças por encaixar, e é o leitor que deveria fornecê-las e encaixá-las no aparelho. Por outro lado, não me lembro de ter lido nada parecido antes num conto: a prosa extremamente enxuta (enxuta no sentido de concisa) com um final confuso pode ser característica de uma linha literária que eu ignore; contudo, parece que estou diante de um traço de originalidade.

(Talvez seja extraliterária a razão ou a causa da extrema concisão, ou da concisão pura e simples: você precisava de um narrador conciso, uma vez que você mesmo precisa financiar o seu médium, ou seja: é você que custeia a sua mídia, ou seja ainda: é você que patrocina o seu canal de comunicação, para usar a expressão de Roman Jakobson, e o seu canal é aquele velho objeto conhecido como livro. Portanto, o livro (cujo acabamento é de ótima qualidade), com 28 linhas por página, com suas limitações físicas, inerentes que são ao papel, pode ter feito com que você, voluntária ou involuntariamente, consciente ou inconscientemente, tenha decidido escrever de modo que pudesse dizer mais com menos palavras. Isso reduz os custos de publicação. Ademais, deve pesar o fato de o leitor do século XXI, a quem, de certa forma, apelamos com temas do seu interesse, ser mais chegado a textos curtos. Talvez estejamos diante de uma reação da literatura à desliteraturização, que é a perda do prestígio da literatura. Para sobreviver, está se tornando mais enxuta.)

            Na tensão que se dá entre a tradição e a ruptura, em várias escolas de época, tais como o barroco, com seu ramo gongórico, e o simbolismo, existem autores que nem sempre contam propriamente uma história vibrante (talvez nem sequer contem história nenhuma). Panapaná (o conto de abertura) injeta imagens lúgubres num ambiente possivelmente onírico: sua ecfrase não está a serviço de um enredo (de modo que o final “confuso” pouco importa): descreve um cômodo extremamente desconfortável (talvez até kafkaniano), com mariposas, carniças, calor e cheiro de putrefação. Tudo isso, inevitavelmente, é sinestésico. Os registros do narrador, portanto, chegam ao abstracionismo, como diria Fausto Cunha, que fala disso em prefácio de um dos livros de Diógenes Magalhães: “Na psicanálise”, escreve Fausto Cunha, “chama-se isto associação livre de ideias; na Arte Literária, chama-se abstracionismo, ou talvez surrealismo”. Coadunam-se com essa afirmação os dizeres que o próprio Diógenes registra a respeito do poema Violões que choram, de Cruz e Sousa: “Com ele [com o poema], mostrou Cruz e Sousa o que se pode fazer com palavras puras, quando o autor possui talento; é uma peça bonita, bem acabada, genial como tudo quanto escreveu Cruz e Sousa [...]” (2001, p. 59). “Isto explica, aliás”, afirma o mesmo Diógenes (2001, p. 56),

 

o fato de um leitor de pouca instrução literária não gostar dos livros dos grandes escritores. Realmente, o leitor pouco instruído quer descobrir em cada livro um enredo, uma aventura, passagens vivas, situações que façam vibrar, episódios estranhos, etc., etc.; ora, não sendo este o caso de Memórias Póstumas de Brás Cubas, por exemplo, o leitor pouco instruído sentir-se-á burlado quando começar aquela obra de Machado de Assis. O que existe de melhor no livro (que é justamente o estilo no sentido artístico) o leitor pouco instruído não está em condições de saborear; e como, por outro lado, o livro não conta uma história eletrizante (e até quase não conta história nenhuma), o leitor pouco instruído o considera intragável.

 

 

Independentemente de reconhecer uma história no poema Violões que choram, de Cruz e Sousa, Diógenes tece uma verdadeira seda de elogios ao poema por não haver necessariamente uma história ou uma intriga, elementos que, segundo o mesmo Diógenes, são os que o leitor de pouca instrução literária busca.

            Por sua extrema concisão e por sua imagética, o Panapaná (o conto) pode muito bem ser um poema em prosa. Segundo a professora Olga Kempinska (2012, p. 170), o poema em prosa foi criado por Aloysius Bertrand. No poema em prosa, não há propriamente uma narrativa, mas nele se “encena a manifestação de uma subjetividade” (idem, ibidem, p. 170).

            A ser verdade a epígrafe desta carta, o “enredo” de Panapaná (o conto) é mero acaso, já que o mérito da prosa não está na história nem no referente. Pode-se dizer que o “enredo” é só um pretexto para a produção de literatura, conforme o que diriam os formalistas russos.

            O conto intitulado Solo, por outro lado, revela uma história mais delineada, nem um pouco onírica, com um narrador que é quase uma 3ª pessoa, mas que está fora dos acontecimentos, que giram em torno de Antenor Saldanha, um adúltero cujo destino é trágico e solitário.

Já o conto Olhos revela uma cena muito parecida com aquela em que Jonathan Harker encara Drácula no caixão. Vejamos o que foi registrado no diário de Jonathan: “[...] parei e olhei para o Conde. Havia um sorrido zombeteiro em seu rosto inchado que parecia me enlouquecer [...]” (STOKER, 2018, p. 53). Ele (Jonathan) conclui a descrição da visão do rosto do vampiro dentro do caixão: “A última visão que tive foi do rosto inchado, manchado de sangue, com um sorriso fixo de malícia que provavelmente vinha diretamente das profundezas do inferno” (idem, ibidem, p. 53). Já o seu Atanásio, embora não seja um vampiro, também sorri dentro do caixão: “Quase a gargalhar ele sorria impudente e imóvel (BERNARDES, 2018, p. 22).

Maria Michele, por sua vez, é mais baseado em verossimilhança, com um princípio de contradição (que não chega a comprometer a coerência interna): o narrador-personagem formara com a tal Michele “meia década de amizade, das mais estranhas que alguém poderia cultivar” (3º parágrafo, página 23), o que contrasta com “quatro tentativas fracassadas de aproximação” (2º parágrafo, p. 23). Contudo, trata-se de uma relação muito peculiar (ou idiossincrática) entre colegas de trabalho, que, mesmo distantes, tinham lá a sua amizade, à sua maneira. (Nesse conto, aliás, existe uma marca estilística que meio que satura o livro: começa com a palavra impossível: o narrador, sempre que pode, diz: “Impossível isso”, “impossível aquilo”.)

            Numa coletânea de contos sombrios, mesmo sem abrir mão de uma atmosfera noturna e lamuriosa, o enredo de André do Sapato novo é um agradabilíssimo alívio cômico (e a comédia é um gênero “baixo” na lógica aristotélica), embora a atitude do pobre e traído André seja oposta ao comportamento de Antenor Saldanha, do conto Solo: Antenor é o infiel, ao passo que André nunca traiu a amada. Uma vez que a revolta de André é causada pelo fato de ter sido trocado por uma mulher, sua ira contra o lesbianismo poderia ser um tema proscrito e rechaçado nos tempos atuais, em que o pensamento totalitário coloniza tanto as mentes de direita quanto as de esquerda, ainda mais quando se leva em conta o significado popular da palavra sapatão. As patrulhas que praticam a cultura do cancelamento estão aí para provar o que digo.

            No interessantíssimo A punhalada, ocorre a insólita tentativa de assassinato praticada por Xoxó, um sujeito que bebe sangue de porco para incorporar um demônio. Tratar-se-ia de um autêntico rito sobrenatural? Ou Xoxó teria apenas um surto psicótico? Aqui, o enredo, mais do que o estilo, talvez mereça atenção especial. “Se esses acontecimentos por muito tempo levaram a personagem e o leitor a acreditar na intervenção do sobrenatural, é porque tinham um caráter insólito” (TODOROV, 2017, p. 51). Para Tzvetan Todrov (2017, p. 52), há dois tipos de sobrenatural: o que se dá em forma de sonho, alucinação, loucura ou drogas, e o que é constituído por acontecimentos que não passam de ilusão ou que não passam de fraude. Sendo ou não uma fraude, ou sendo apenas um surto psicótico, insinua-se a possibilidade de haver sobrenatural, fundamental ao Gótico, “ainda que ‘domesticado’ por molduras realistas — o sonho, a alucinação e o entorpecimento. O elemento fantástico na ficção gótica permitiria o afloramento de tudo o que é suprimido pelo discurso da realidade” (FRANÇA e SENA, 2014, p. 100). Ou o narrador-personagem está diante do sobrenatural, ou está diante de um acontecimento que pode receber uma explicação racional. Na primeira hipótese, temos o fantástico- maravilhoso, em que, inserido indubitavelmente na diegese, existe o sobrenatural; já no segundo caso temos o fantástico-estranho, que é apenas um falso fantástico, com direito a explicações racionais do jaez mencionado pelo professor Júlio França, conforme o que postula Todorov (2017, p. 51)[2]. De qualquer forma, o narrador-personagem é que não pode perder tempo com conjecturas: ele precisa subjugar Xoxó para sobreviver. O assassino de porcos é assustador, e não importa se é mesmo demoníaco ou apenas louco. Entretanto, declara Érico Veríssimo (1996, p. 21):

 

A imaginação dos nativos povoou a mata com muitos duendes e demônios. Havia o Curupira, um sujeito perverso que costuma fazer os homens se perderem para suga-lhes o sangue. Parecia um índio pequeno, com dentes verdes e os pés virados para trás. Havia também o Caapora ou Caipora, um gigante peludo de cara triste que costumava aparecer comandando uma vara de porcos selvagens. Se você o encontrasse na mata teria azar pelo resto da vida.

 

                Em A hora da estreia, além de um agradável e intertextual trocadilho (ou princípio de trocadilho) com a literatura de Clarice Lispector, existe um traço autobiográfico, sucedido por uma fatalidade que só pode ser fruto do medo causado pelo locus horribilis que é o meio urbano. Ficcionar fatos da própria vida é assunto para os Estudos Literários, e estou ciente de que não entendo do riscado. Parece que se trata de tema de estudo abraçado por uma diretriz de pesquisa relativamente pioneira (e não vejo como os Estudos Culturais possam dar subsídios aos críticos que estudam autoficção ou ficção biográfica). De qualquer forma, Erick, você prova que o literato pode se servir de suas experiências cotidianas em sua produção literária; afinal, “há [...] casos em que a biografia do autor acha-se em relação pertinente com sua obra. Apenas, para ser utilizável, seria preciso que esta relação fosse dada como um dos traços da própria obra” (TODOROV, 2017, p. 160).

            No interessante Cento e treze, o leitor é presenteado com a imagem de um Xangô de esquerda, para o desgosto do narrador-personagem, que recebe a imagem da boca de Carlos PT, um barbeiro que lhe conta a história de “Seu” Mangueira. É uma história mais engraçada que a de Júlia, do conto seguinte, intitulado O texto, a testa e o carimbo que atesta. Entre este e aquele lemos a tragédia de Walter, um advogado vítima da desumanidade no conto Pobres animais. Temos um paradoxo: se as pessoas preferem prestar socorro imediato a um cão e não a um humano, isso já seria indício de que regredimos na escala evolutiva, enquanto os cães seriam mais dignos de socorro por estarem moralmente acima de nós.

            Em o País do futebol e Estranho personagem, há um certo humor. No caso de Estranho personagem, houve uma coincidência, já que eu estava acompanhando o desenho animado japonês A Lenda de Zorro (Kaiketsu Zorro; tradução: O magnífico Zorro), uma adaptação japonesa do personagem de Johnston McCulley (1883-1958). (É sensacional a música de abertura!) Infelizmente, num mundo cheio de bravatas e pouquíssimas bravuras, ninguém quer seguir o exemplo de Zorro. O personagem Josué tem apenas um complexo ou mania de grandeza mesmo. Que pena.

A ponte, o passado e os vãos é uma interessante reflexão sobre a exploração da classe trabalhadora, exemplificada pela construção da ponte Rio-Niterói no tempo da ditadura militar. (Sabe-se que aquela ponte sempre vai marcar a memória de quase todo aluno da FFP que tenha de ir ao outro campus da UERJ.) A tensão entre mito e história combina muito bem com a intertextualidade: é possível notar a influência de Camões e a do poema Mar português, de Fernando Pessoa

Os contos Olhos de infância, Homo sapiens e Monstrengo aproximam-se uns dos outros devido à crítica à pós-modernidade, marcada pela falta de crença na razão.

Déjà Vu, por sua vez, aborda temas muito banais, mas com um humor que só situações degradáveis exigem quando é necessário um canal que dê vazão aos desgostos gerados pelas circunstâncias que não controlamos.

Em Máscaras, o pando de fundo histórico, tecido com origens italianas e ibéricas, reconstrói um pouco as influências que a Europa possa ter no nosso carnaval. Mais uma vez o leitor fica diante do sobrenatural: Armindo e os parentes apareceram mesmo nas visitas realizadas pelo narrador-personagem? Ou seria tudo uma alucinação dele?

Já em Eveready não cabe a hipótese de alucinação, conquanto seja possível interpretar a “felinotropia” da protagonista como sendo um símbolo da transformação da menina em mulher. De tal transformação vêm os conflitos edípicos (ou vêm os conflitos que se dão à maneira de Electra). A mãe tem de aceitar a transformação da filha.

Em O Cassino do Mimi encontramos dois garotos que se veem em situações de gelar o sangue. Cheguei a cogitar de algum vislumbre de semelhança entre esse conto e A queda da casa de Usher, de Edgar Allan Poe, mas foi só um princípio de vislumbre mesmo. O conto de Edgar pode representar a decadência da aristocracia. Não vejo isso em O Cassino do Mimi ⸺ até porque, neste país, qualquer “nobre” de matriz étnica europeia tem origem plebeia: a linhagem sanguínea não impediu que fossem comprados, aqui e ali, títulos de nobreza. Maldita burguesia!

Por outro lado, em Beemote ⸺ o meu conto favorito da coletânea ⸺, o leitor conhece um edifício que, mesmo em pleno funcionamento, é uma herança com dupla opressão: a que sofreram os escravizados e a que sofreram os cristãos-novos. Ambos os elementos são elementos do Gótico brasileiro (conforme as explicações mais abaixo). O narrador envolve com maestria o leitor numa atmosfera de fundo histórico com intensa tônica de satanismo. Insisto, contudo, em dizer que a história, mesmo sendo de arrepiar, importa menos que a imagética, que provoca e assusta o leitor. (Ainda que aleguem que existe o pacto ficcional, a função conativa da linguagem, de que nos fala Roman Jakobson, é sempre acionada por qualquer mensagem humana, e tal função é acionada quando o texto afeta as emoções, as opiniões e o comportamento do receptor; veja-se o caso do filme A Paixão de Cristo, que, apesar do pacto ficcional, não impediu que espectadores sentissem mal-estar.) Não cheguei a ficar apavorado, porém sei que o conto é capaz de o fazer. Eu jamais o leria em sala de aula devido ao totalitarismo de algumas seitas evangélicas ⸺ e isso certifica a qualidade da prosa.

Tenho de destacar os elementos góticos brasileiros, que ficam patentes na Fazenda Colubandê, a começar pelo trecho seguinte: “Sentiam dor, mas eram escravos, melhor era obedecerem” (BERNARDES, 2018, p. 61). A isso se soma a perseguição aos cristãos-novos. Como afirma o saudoso professor Fernando Monteiro de Barros Jr.: “[...] o Gótico brasileiro segue os mesmos parâmetros do Gótico sulista norte-americano, já que o Brazilian Gothic, assim como o Southern Gothic, apresenta em suas narrativas o legado fantasmático de uma sociedade marcada pelo sistema escravocrata [...]” (2014, p. 82, negrito meu). “O passado que nos domina”, afirma o sociólogo Jessé Souza (2017, p. 151),

 

não é a continuidade com o Portugal pré-moderno que nos legaria a corrupção só do Estado, como o culturalismo dominante até hoje entre nós nos diz. Nosso passado intocado até hoje, precisamente por seu esquecimento, é o do escravismo. Do escravismo nós herdamos o desprezo e o ódio covarde pelas classes populares, que tornaram impossível uma sociedade minimamente igualitária como a europeia. Foi precisamente porque a Europa não teve escravidão que Norbert Elias pôde construir o processo civilizatório europeu a partir da ruptura com a escravidão da antiguidade.

 

O Gótico Brasileiro seria diferente do Gótico no Brasil: este apresentaria elementos estrangeiros, como os que se encontram em Noite na Taverna, de Álvares de Azevedo, que naquele livro de contos oferece histórias que não se passam no Brasil, enquanto aquele empregaria as cores locais.

Por tudo quanto aqui fica dito, posso afirmar que sua prosa é ágil e concisa, além de muito agradável. Embora na crítica literária eu não goste do que, a meu ver, é a supervalorização das cores locais, as letras gonçalenses têm sorte por você emprestar ao município o seu talento. Você conseguiu se servir de temas góticos e tétricos sem excluir o que a sua região e a sua biografia lhe oferecem. Você é testemunha de seu tempo ⸺ uma testemunha que, com engenho e arte, fez um trabalho que cumpre a função de comover, conforme o postulado escolhido como epígrafe desta carta-resenha. Parabéns!

Sinceramente,

 

Márcio Alessandro de Oliveira [3]

 

Guarapari, ES. 22 de dezembro de 2022.

 

Referências

 

ANJOS, Augusto. Eu e outras poesias. 48. ed. especial revista e ampliada. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.

 

BARBOSA, Francisco de Assis.  Notas biográficas.  In: ANJOS, Augusto.  Eu e outras poesias. 48. ed. especial revista e ampliada. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2010.

 

BARROS, Fernando Monteiro de. Do castelo à casa-grande: o “Gótico brasileiro” em Gilberto Freyre. Soletras, São Gonçalo, n. 27, jan.-jun. 2014, pp. 80-94. Disponível em: <http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/soletras/article/view/13050>. Acesso em: 19 ago. 2017

 

CUNHA, Fausto. Prefácio. In: MAGALHÃES, Diógenes. Neurose no corpo. 2ª. ed. Rio de Janeiro: Edições Coisa Nossa, 2006.

FRANÇA, Julio; SENA, Marina. Do Naturalismo ao Gótico: as três versões de “Demônios”, de Aluísio Azevedo. Soletras, São Gonçalo, dossiê n. 27, pp. 96-111, jan.-jun. 2014. Disponível

em: <http://www.e-publicacoes.uerj.br/index.php/soletras/article/viewFile/12998/10336>. Acesso em: 3. Jul. 2018.

 

GROOM, Nick. Chapter 8: The descent into hell. In: ______. The Gothic: A Very Short

Introduction. United Kingdom: Oxford, 2012.

 

KEMPINSKA, Olga Guerizoli. Aula 22: O poema em prosa. In: ______ et al.. Teoria da Literatura I. Rio de Janeiro: Fundação Cecierj, 2012.

 

MAGALHÃES, Diógenes. Redação com base na Linguística (e não na Gramática). 5ª. ed. Rio de Janeiro: Edições Coisa Nossa, 2001.

 

______. Simbologia do Onírico. 2ª ed. Rio de Janeiro: Edições Coisa Nossa, 1996.

 

POE, Edgar Allan. A queda da casa de Usher. In: ___. Edgar Allan Poe: medo clássico: coletânea inédita de contos do autor [volume I]. Tradução de Marcia Heloisa Amarante Gonçalves. Rio de Janeiro: Darkside Books, 2017.

SOUZA, Jessé. A elite do atraso: da escravidão à Lava Jato. Rio de aneiro: Leya, 2017.

STOKER, Bram. Drácula (edição bilíngue). Tradução de Doris Goettems. São Paulo: Editora Landmark, 2018.

 

TODOROV, Tzvetan. Introdução à Literatura Fantástica. Tradução de Maria Clara Correa Castello. São Paulo: Perspectiva, 2017.

 

______. Como ler. In: ______. Poética da prosa. Tradução de Claudia Berliner. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

 

VERISSIMO, Érico. Breve história da literatura brasileira. Tradução de Maria da Glória Bordini. 3. ed. São Paulo: Globo, 1996.

           



[1] Nick Groom (2012, p. 76-77) divide as obscuridades em sete categorias para que sejam propostas ao romance gótico: metereológicas (névoas, nuvens, vento, chuva, tempestade, fumaça, escuridão, sombras, melancolia), topográficas (florestas impenetráveis, montanhas inacessíveis, abismos, desfiladeiros, desertos, charnecas destruídas, campos de gelo, oceano sem limites), arquitetônicas (torres, prisões, castelos cobertos de gárgulas e ameias, abadias e priorados, túmulos, criptas, masmorras, ruínas, cemitérios, labirintos, passagens secretas, portas trancadas) materiais de tecido ou para o corpo (máscaras, véus, disfarces, cortinas ondulantes, armaduras, tapeçarias), textuais (enigmas, rumores, folclore, manuscritos ilegíveis e inscrições, elipses, textos quebrados, fragmentos, linguagem coagulada, polissilabismo, dialeto obscuro, narrativas inseridas, histórias dentro de histórias), espirituais (mistério religioso, alegoria e simbolismo, ritual católico romano, misticismo, maçonaria, magia e ocultismo, satanismo, feitiçaria, invocação, condenação) e psicológicas (sonhos, visões, alucinações, drogas, sonambulismo, loucura, personalidades divididas, identidades erradas, duplos, desarranjos, presenças fantasmagóricas, esquecimento, morte, assombrações).

[2] O mesmo Tzvetan Todorov (2017, p. 30) afirma: “Num mundo que é exatamente o nosso, aquele que conhecemos, sem diabos, sílfides nem vampiros, produz-se um acontecimento [como o surgimento de um fantasma ou de uma assombração] que não pode ser explicado pelas leis deste mesmo mundo familiar. Aquele que o percebe deve optar por uma das duas soluções possíveis; ou se trata de uma ilusão dos sentidos, de um produto da imaginação e nesse caso as leis do mundo continuam a ser o que são; ou então o acontecimento realmente ocorreu, é parte integrante da realidade, mas nesse caso a realidade é desconhecida para nós [...]”.

[3] Licenciado em Letras (Português e Literaturas) pela UFF, mestre em Estudos Literários pela UERJ e professor efetivo de duas redes públicas. Currículo na Plataforma Lattes: <http://lattes.cnpq.br/0328708771235302>.

quarta-feira, 15 de novembro de 2023

Manifesto em defesa do trabalho docente: Um breve libelo contra as condições ultrajantes de trabalho

 

Márcio Alessandro de Oliveira. Guarapari, ES, 25/10/2023.

 

Prezados colegas:

 

Estou compartilhando com vocês um passo a passo que poderá anular circunstâncias degradantes do ambiente de trabalho. Vejamos:

 

1.      Abandonem a ideia de que a escola pública é igual a uma empresa privada.   

Nosso compromisso maior não é com o Estado, nem com o governo, mas sim com a sociedade, já que é ela que dá razão de ser a eles, e não o oposto: somos servidores públicos, e não serviçais particulares desta ou daquela personalidade política, vulneráveis ao sabor do vento ou da moda. Portanto, não cabe na instituição escolar a ideologia patronal. A premissa de que sejamos funcionários iguais aos da iniciativa privada é um despautério que nos diminui. Somos tratados como profissionais de nível fundamental ou médio, e não como profissionais de nível superior. Ora, as organizações privadas são efêmeras, e digo isso porque empresas são abertas e fechadas o tempo todo, enquanto as instituições públicas, como os tribunais, permanecem, e o objetivo dos tribunais não é o lucro. Se juízes e promotores não trabalham dentro da lógica empresarial, por que o professor, que é responsável pela formação daqueles profissionais, deveria se sujeitar à lógica mercantil? A resposta, pelo visto, está numa circunstância que, em verdade, são dois fantasmas que têm de ser exorcizados: o do Brasil-Império e o da ditadura militar. Naqueles dois tempos, o magistério sempre foi rebaixado e esmagado por burocratas. Com o neoliberalismo e o totalitarismo fascista de Bolsonaro, a lógica empresarial-mercantil ficou ainda mais forte. Não é à toa que é expressivo o número de designações temporárias nos quadros do magistério público. E é nesse cenário que a figura do gestor se consolida dentro da escola, onde se fortalece o pensamento de seita tanto quanto o de união em torno de ideologias incompatíveis com a res publica (a coisa pública), de modo que a escola é tratada como se fosse uma empresa familiar, fato que se coaduna com as indicações políticas e com as relações de compadrio e poder. Não se respeita, pois, o princípio da impessoalidade. A meritocracia (o merecimento) não é o critério para a escolha do diretor, que talvez nem mais exista, uma vez que se usa a expressão gestor escolar. Os diretores nem sequer são eleitos democraticamente. Existem diretores que nunca, jamais, lecionaram! Ora, se só um médico pode dirigir um hospital, por que um indivíduo que nunca lecionou pode dirigir uma escola? Esse é um dos sinais de que as secretarias de educação têm o mercado como condição, a burocracia como meio e o lucro como fim.

 

2.      Não pode haver hierarquia.

Se entre advogados, juízes e promotores não há hierarquia (talvez nem sequer assimetria), por que pedagogas, coordenadores e diretores estariam acima de nós? No “santo” ofício burocrático de fiscalizar o trabalho docente, e disso é prova o fato de usarem assistentes de alunos especiais para vigiar professores que sofram uma caça às bruxas, pensam as pedagogas que conhecem todas as metodologias e que por isso podem nos avaliar. Assim, criou-se o costume de culpar o professor por ele supostamente não incentivar alunos, mesmo que estes sejam recalcitrantes, grosseiros e indisciplinados ao ponto de se autoexcluírem do aprendizado. Apesar de todo o amparo regimental, legal e estatutário, o professor competente tem de lidar com opiniões ineptas e anticientíficas que orientam o “trabalho” das pedagogas. Estas se tornaram capitãs do mato da educação. Daí a importância de extinguir o cargo de supervisor, o de inspetor e todos os outros cargos obsoletos exercidos por pessoas que não são responsáveis por ensino nenhum, ainda que trabalhem em salas climatizadas, enquanto alunos e professores sofrem com altas temperaturas em salas de aula com ventiladores queimados ou quase caindo aos pedaços.

 

3.      Os métodos de alfabetização devem ser predominantemente sintéticos e fônicos.

A Pedagogia, em sua desonestidade intelectual, insiste em vigiar e culpar professores no fracasso que é a escola pública brasileira. Pois bem: quantas pedagogas lecionam na educação infantil? Quantas lecionam no ensino fundamental I? As “tias” aplicam métodos sintéticos e predominantemente fônicos? Na fase da escrita, que é a do ditado, verificam se os alunos usam corretamente letras maiúsculas, minúsculas e cursivas? No 2º Ano, fazem os alunos uso do caderno de caligrafia? Ou predomina a estupidez do método analítico e global? Os alunos superam a fase icônica de alfabetização? Que epistemologia orienta o trabalho delas? Será aquela que diz que devem cortar e colar papel e desenhar matinho e florzinha? Os alunos chegam ao ensino fundamental II com várias defasagens, e isso não pode ser explicado pela classe social, que ela não é um determinismo.

 

4.      As salas devem ser minimamente bem equipadas.

É absurdo que burocratas trabalhem em ambientes climatizados, enquanto alunos e professores sofrem no verão e depois dele em salas abafadas, com ventiladores precários. Existem escolas onde existe apenas um banheiro para os docentes! Essa é a prova cabal da malversação do dinheiro do contribuinte, porém, acima de tudo, é a prova cabal do desrespeito e do desprezo pelo trabalho docente.

 

5.      É preciso respeitar a laicidade do Estado.

Existem diretores que fazem orações no primeiro dia de trabalho docente ou na abertura do conselho de classe. Ou a reza é católica, ou é evangélica. Ora, se um umbandista não pode cantar ponto para Exu em tais situações, diretores não podem fazer orações na escola pública.

 

6.      Abandonem a noção de clientela.

As leis do mercado não podem ser absolutas. Infelizmente, graças a certas ideologias de direita e a seitas evangélicas, eivadas de teologia da prosperidade, cada dia mais diminui-se a autoridade do professor, cujo cliente ou são as famílias, ou são os alunos. Acontece que não somos empregados deles: nosso compromisso primeiro é com o futuro e com a sociedade, e não com o aluno. Para piorar, os gestores acham que o professor é mesmo empregado do aluno ou dos pais. Para os burocratas, são nossos clientes, e o cliente, na lógica mercantil, tem sempre razão. Seus filhos não podem nunca ter dificuldades na matéria. Ai do professor que contestar pais e mães, principalmente quando são integrantes da classe média, cuja burrice chega às raias do espantoso, e cuja arrogância é imitada pelas camadas que estão abaixo dela. Precisamos, dentro da lei, colocar tais pais, tais mães e tais alunos em seu devido lugar. Se eu falo mal de Bolsonaro em sala de aula, os pais têm de se conformar com isso e aceitar que seus filhos, por se comportarem mal e não estudarem em casa, são uma vergonha para a sociedade.

 

7.      O aluno pode sair de sala quando bem entender.

Não cabe aos coordenadores tirar do aluno o direito de ir e vir; nem cabe a eles (assim como não cabe aos gestores escolares) exigir que os professores pratiquem essa arbitrariedade. Quem será responsabilizado por uma eventual infecção urinária? Que ideologia militaresca é essa?

 

8.      Abandonem a supervalorização das avaliações externas.

A LDB é muito clara: Devem os aspectos qualitativos prevalecer sobre os quantitativos. A arte de pensar e o prazer de ensinar não podem ficar presos a ditames de ineptas avaliações externas, que nem sequer levam em conta as condições materiais e históricas em que se realiza o trabalho docente.

 

9.      Desconfiem do “argumento” do trabalho “em equipe”.

Essa história de “equipe” é só mais um produto da nefasta ideologia empresarial. Não é neutra a escolha da palavra equipe: nunca usam a expressão corpo docente. Além disso, no fim, o que prevalece é o indivíduo. Ora, o indivíduo cujos critérios têm de ser acatados é o professor, que é autoridade na disciplina que leciona, e isso não é palavrão, nem autoritarismo. É isso que dessacraliza os estúpidos mitos das pedagogas e dos burocratas, autoproclamados gestores da equipe pedagógica, uma instância que se considera superior aos docentes. É o professor que pode e deve decidir se um aluno pode ou não ser aprovado; é ele que pode e deve decidir que caminhos epistemológicos e que modelos de ementa devem ser seguidos. Muitos burocratas jamais lecionaram, e ficam exigindo o preenchimento de formulários a fim de justificar a sua presença nos sistemas de ensino. A burocracia deveria estar a serviço da educação escolar, gratuita, laica e de qualidade, e no entanto é a educação que está prestando serviços aos burocratas, cujo único fim é a reprodução da própria burocracia. Como podem praticar ingerências no trabalho docente, se tal trabalho eles nunca fizeram? Assim como a sujeira, o calor e a umidade criam o cenário para a proliferação de fungos e germes, esse tipo de ideologia tacanha cria o cenário para o uso de medidas predatórias e para o abuso do poder discricionário. Já se tornou lugar-comum que pessoas com baixo grau de letramento redijam relatórios ineptos sobre professores que não abaixam a cabeça para os desmandos dos gestores. Daí a importância de gravar as reuniões e lutar por direitos.


sábado, 4 de novembro de 2023

HIDALGO, Luciana. Penélope dos trópicos. 1ª ed. Rio de Janeiro: Editora do Silvestre, 2022, 216 páginas. ISBN 978-65-998207-0-0.


 

Considerações sobre Penélope dos trópicos

 

                                            “Segue-se a história herdada de Atlantis

                                                     Todo começo é o caos

                                                   A raça humana, eterna mutante nasce ao plano astral.”

 

          (Deborah Blando.)

 

“Mesmo na noite mais triste

em tempo de servidão

há sempre alguém que resiste

há sempre alguém que diz não.”

 

       (Manuel Alegre apud Erthal.)

 

 

 

Márcio Alessandro de Oliveira [1]

 

            Talvez não haja muito que acrescentar ao que já fica dito nos paratextos (presentes na orelha e na contracapa), e os paratextos (tais como sinopses, prefácios e posfácios) sempre condicionam os horizontes de expectativa do leitor e os seus protocolos de leitura. Não obstante, a importância da crítica é a avaliação de um texto literário, que, sendo único e inédito, é um caso particular entre tantos outros casos particulares, com semelhanças e diferenças que podem ou não ser suficientes para que sejam enquadrados no mesmo gênero: Sem essa avaliação não é possível determinar a que gênero pertence o escrito literário, em que o autor fica trabalhando durante anos até que seja publicada a mensagem. Trata-se da relação entre uma obra em particular e o geral (ou gênero). Sem a avaliação (que tem de ser fundamentada em teorias literárias e por elas guiadas) também não é possível saber que inovações um autor, dentro das leis do gênero, e dentro da tensão entre a tradição e a ruptura, proporciona à Literatura, o patrimônio arruinado incessantemente pelos currículos escolares. É dessa maneira que se compõem as fortunas críticas da obra de um autor, fortunas que se tornam teorias literárias. É dentro de tal viés que tentarei examinar o novo romance de Luciana Hidalgo (1965), que é mesmo um poema em prosa. A análise se divide em dois eixos, a saber: 1. o eixo das ideias (ou do conteúdo); 2. o eixo concernente à forma e aos procedimentos estéticos. O primeiro merece um estudo sob a luz do que Marilena Chauí afirma sobre ideologia e sobre o mito fundador do Brasil. Este último conceito é indispensável, porque é explícita a intertextualidade com os mitos gregos. Antes, porém, que se faça um estudo em dois eixos, é preciso analisar questões externas à literatura, poque elas condicionaram um trabalho que Luciana, movida por aquele impulso interior de que nos fala Antonio Cândido (e que alguns poderiam chamar de insight ou de inspiração), exerceu nos mais recentes cinco anos[2].

 

Questões extrínsecas à literatura

 

            Quem acompanha Luciana Hidalgo no Facebook sabe os motivos por que seu novo romance saiu com um selo inédito (o da Editora do Silvestre). Isso é um dos sinais de que o mundo editorial está na mão de um mercado totalitário[3], que oferece uma prosa fútil para leitores igualmente frívolos, formados em escolas que apenas confirmam e reforçam a desliteraturização (a perda do prestígio da literatura)[4]. Um adolescente do terceiro ano do ensino médio, por exemplo, corre o risco de nunca entrar em contato com a obra de Lima Barreto (1881-1922). Dificilmente ficaria interessado pelo romance O Passeador (2011), também de Luciana Hidalgo. Essa é a miséria do que Pierre Bordieu (1968, p. 105-45) chama de campo intelectual, no qual estão os leitores, os críticos, os editores, a imprensa e tantos outros integrantes, e no qual a escola não cumpre o papel que deveria desempenhar.

Talvez uma das funções da escola seja a de evitar a proliferação dos fanqueiros literários, que se vendem para o mercado. Machado de Assis define o fanqueiro literário nos termos seguintes:

 

[...] é uma individualidade social e marca uma das aberrações dos tempos modernos.  Esse moer contínuo do espírito, que faz da inteligência uma fábrica de Manchester, repugna à natureza da própria intelectualidade. Fazer do talento uma máquina, e uma máquina de obra grossa, movida pelas probabilidades financeiras do resultado, é perder a dignidade do talento, e o pudor da consciência [ASSIS, 1859-1863-1946, p. 14].

 

Entretanto, os procedimentos estéticos da literatura culta estão presentes na literatura de massa (que, por pedantismo, os acadêmicos chamam de paraliteratura, termo que esconde a palavra subliteratura, um substantivo mascarado por um eufemismo hipócrita): “Há também o best-seller de boa qualidade técnico-literária, que não reduplica diretamente nenhuma outra grande obra ou o real-histórico” (SODRÉ, 1988, p. 59). Portanto, não se trata de inferiorização nem de desqualificação do que os acadêmicos, em seu pedantismo impenitente cultivado em torres de marfim, chamam de paraliteratura.

 O trabalho de avaliação julga um caso particular (uma obra) para confrontar os elementos com o que postula a teoria, de modo que se verifique o que há de diferente e o que há de conhecido no texto. Dessa forma, vai-se do particular ao geral (isto é: da obra específica ao gênero literário a que ela pertence) e vice-versa. Destarte, examina-se “um livro que toma seu valor de outros livros, que é original se não se parece com os outros, que é compreendido porque é o reflexo dos outros” (BLANCHOT, 2011, p. 316). Ademais, vale lembrar:

 

O autor que escreve especialmente para um público, na realidade, não escreve: é esse público que escreve, e, por essa razão, esse público não pode mais ser leitor; a leitura o é apenas em aparência, no fundo é nula. Daí a insignificância das obras feitas para serem lidas — ninguém as lê. Daí o perigo de escrever para os outros, para despertar a palavra dos outros e descobri-los a eles mesmos: é que os outros não querem ouvir suas próprias vozes, mas sim a voz de um outro, uma voz real, profunda, que incomoda como a verdade [BLANCHOT, 2011, p. 317].

 

            O romance de Luciana Hidalgo chega ao abstracionismo, como diria Fausto Cunha, que fala desse tipo de fenômeno em prefácio de um dos livros de Diógenes Magalhães: “Na psicanálise”, escreve Fausto Cunha, “chama-se isto associação livre de ideias; na Arte Literária, chama-se abstracionismo, ou talvez surrealismo”. Coadunam-se com essa afirmação os dizeres que o próprio Diógenes registra a respeito do poema Violões que choram, de Cruz e Sousa: “Com ele [com o poema], mostrou Cruz e Sousa o que se pode fazer com palavras puras, quando o autor possui talento; é uma peça bonita, bem acabada, genial como tudo quanto escreveu Cruz e Sousa [...]” (2001, p. 59). “Isto explica, aliás”, afirma o mesmo Diógenes (2001, p. 56),

 

o fato de um leitor de pouca instrução literária não gostar dos livros dos grandes escritores. Realmente, o leitor pouco instruído quer descobrir em cada livro um enredo, uma aventura, passagens vivas, situações que façam vibrar, episódios estranhos, etc., etc.; ora, não sendo este o caso de Memórias Póstumas de Brás Cubas, por exemplo, o leitor pouco instruído sentir-se-á burlado quando começar aquela obra de Machado de Assis. O que existe de melhor no livro (que é justamente o estilo no sentido artístico) o leitor pouco instruído não está em condições de saborear; e como, por outro lado, o livro não conta uma história eletrizante (e até quase não conta história nenhuma), o leitor pouco instruído o considera intragável.[5]

 

Independentemente de reconhecer uma história no poema Violões que choram, de Cruz e Sousa, Diógenes tece uma verdadeira seda de elogios ao poema por não haver necessariamente uma história ou uma intriga, elementos que, segundo o mesmo Diógenes, são os que o leitor de pouca instrução literária busca. A protagonista de Luciana Hidalgo está atenta à plasticidade, às cores, às formas e aos aromas, que ela recorta de um jeito muito dela. Além disso, Penélope monitora a própria produção cerebral; portanto, é cartesiana; chega a ser anti-pós-modernidade, já que a pós-modernidade (ou hipermodernidade, ou modernidade líquida) é marcada pelo não-racionalismo.

 

Das ideias ou do conteúdo: um resumo

 

            Se eu tivesse de destacar o principal referente (o tema central) de Penélope dos trópicos, eu diria que é a busca pessoal pela utopia, que, por definição, é formada por um lugar e por um tempo inexistentes e ideais: existem só nas ideias (ideias, e não ideologias). É essa busca que lança a heroína numa história em que ela está sempre tecendo considerações sobre os fatos e as mazelas que assolam o país: está sempre a fiar e a desfiar considerações sobre fatos, mitos, lugares e pessoas. Ainda não estou certo quanto à categoria em que possa encaixar Penélope (a protagonista): é uma personagem plana (sem mudanças no psiquismo e nos gestos) ou esférica[6] (com evolução interior e exterior)? Certamente é uma arquiteta, além de ser uma órfã cujos pais lhe proporcionaram uma formação que, pelo visto, fica só na ficção mesmo: o pai era professor de Latim; a mãe, de mitologia, e os dois eram lentes (professores universitários).

            A história começa a ser narrada numa praia, em que Penélope, mulher balzaquiana que deve ter nascido aproximadamente em 1990, e pertence a uma geração de “humanos moldados por apresentadoras alouradas e abestalhadas” (HIDALGO, 2022, p. 137), de “cabelos pretos e fartos” (HIDALGO, 2002, p. 33), é a única humana que acompanha a única gaivota que não voa (sem indícios de que tenha crescido ouvindo Lua de Cristal). “Desnorteada”, diz o narrador (p. 13), “ela [Penélope] saltita pelas espumas das ondas num traçado todo torto”. O contraste entre a humana e a gaivota poderia muito bem ser o abismo que separa os dois animais na escala evolutiva, uma vez que Penélope, que pondera sobre o código genético dos transeuntes da orla ao mesmo tempo que avalia as formas, as cores e os outros atributos físicos dos outros humanos, obviamente está num patamar superior, apesar de admitir que aqueles corpos são carnavalizados e bestiais. Isso faz dela um consolo para o leitor, possivelmente deprimido diante de tanta sordidez humana. A protagonista é uma agulha no palheiro. Trata-se de uma corporificação da presença humana: ela une o trabalho intelectual ao braçal (ou, se o leitor preferir, une o trabalho espiritual ao corporal), muito embora ela, como a voyeur e andarilha que é, seja “capaz de embarcar nos pensamentos mais delirantes mesmo sabendo que depois fica difícil voltar, recuar, retomar itinerário mais razoável” (p. 15). O uso da razão, conforme o registro da seção anterior, é um dos mais acentuados atributos do romance. O excesso de trabalho mental deve levar a protagonista a exercitar o corpo em caminhadas e natações. Infere-se que ela precisa disso para não padecer: “Ultimamente”, diz o narrador (p. 15), “tem se esforçado para vigiar tudo que seu cérebro produz, do lixo mais fétido à beleza mais sublime”. Se a mente vazia é oficina do Diabo, uma mente sobrecarregada, sem esforço físico, também o é. É como se a personagem tentasse aliviar a tensão da mente com exercícios físicos. Neste ponto, o romance é bem educativo, sem a pretensão de qualquer pedagogia moralista. Não é à toa que “tem de fazer esforço hercúleo para subir, um esforço que requer alguma teimosia dos músculos, certa simpatia dos nervos, ou seja, toda uma sinfonia fina e bruta dos instintos mais primários” (HIDALGO, 2022, p. 30); não é por acaso que fica “numa luta que é também bravia dança com a correnteza” (idem, ibidem, p. 31). Sem esforço físico proporcionado pelos exercícios da natação, o corpo de Penélope padeceria. Ela, cujas “ideias têm a natureza esvoaçante das gaivotas” (HIDALGO, 2022, p. 19), deve seguir à risca o mote que diz “corpo são, mente sã”. Busca o equilíbrio entre “o peso do pensamento e a leveza do movimento” (idem, ibidem, p. 19).

            Conquanto as observações de Penélope não sejam tão mórbidas quanto as imagens que Augusto dos Anjos inoculava em sua poética, cujo tema era a decomposição, fica patente a diferença entre o grotesco e o sublime no trecho seguinte (p. 35):

 

É uma cena meio grotesca em que uma gaivota não difere muito de um abutre. E pensando bem, se diferença houvesse entre os dois, seria a favor do abutre, já que a gaivota come seres ainda vivos enquanto o abutre pelo menos espera que morram. De uma forma ou de outra, Penélope confirma o que achou de primeira: é uma imagem feia e melancólica.

 

            Com efeito: “O grotesco é um olhar acusador que penetra as estruturas até um ponto em que descobre a sua fealdade, a sua aspereza” (SODRÉ, 1980, p. 72). É claro que não se deve confundir o horror, gerado que é pelo grotesco, com o terror, gerado pelo sublime. Pessoalmente, não me atrevo a encarar ondas tão fortes como as que Penélope enfrenta (sou igual ao personagem Theo). A imensidão do mar, assim como o alto de uma montanha, gera admiração, mas também causa certo medo, que podemos chamar de terror. Analisemos as explicações do professor Maurício Menon (2007, p. 47):

 

David Punter (1996) demonstra a importância do tratado de Burke a respeito do sublime pelo fato de ali haver a primeira tentativa de se estabelecer a conexão entre o sublime e o terror. Decorre daí a influência do escrito de Burke sobre a obra de Radclife, que soube colocar em prática nos seus romances aquilo que ele havia sistematizado.

O sentimento de terror despertado em uma personagem pode, por extensão, também ser despertado no leitor. Tome-se, por exemplo, a descrição de uma personagem sendo perseguida em meio a uma paisagem, cortada por serras escarpadas e nevadas, contendo abismos imensuráveis. A grandeza do lugar gera nessa personagem um sentimento de incerteza, de terror, há uma expansão dos sentidos dela face ao ambiente, aliado ao nervosismo da perseguição. Um sentimento análogo ao vivido pela personagem pode também ser despertado no leitor, dentro do pacto emocional que este faz com a leitura [MENON, 2007, p. 47].

 

Já o horror, “ligado a um outro tipo de estado emocional”, diz o professor Maurício Menon (2007, p. 47), “tende a retrair ou até aniquilar a faculdade humana diante do objeto do qual é emanado”. Penélope, é claro, prefere as gaivotas, porém a escolha é justificada, uma vez que elas ensinam à humana minimalista “o valor dos destinos curtos, dos voos breves ao longo da costa, sem grandes afoitices mundo afora, sem migrações exageradas (os voos de cabotagem por assim dizer)” (HIDALGO, 2022, p. 35, negrito meu). A aparente leveza das aves forma um binômio com o peso das agruras diárias: “as disputas do trabalho, as reuniões de condomínio, os neofascistinhas das redes sociais” [7] (HIDALGO, 2022, p. 35).

Curiosamente, Penélope flerta com Antônio (cujo nome, pelo visto, também é de origem grega) e dorme com ele, que também faz parte da massa bestializada que tem arruinado o país. A burrice dele fica explícita em alguns trechos, dos quais destaco este: “ele falando sem parar, ela pensando sem falar” (p. 25). (Se para conquistar mulheres eu tivesse facilidade e talento equivalentes aos que ela tem para arranjar homens, eu seria um Ulisses cobiçado por várias Calipsos.) Neste ponto, há apenas heteronormatividade, sem qualquer influência grega de Lesbos ou francesa de Baudelaire. Seria muito artificial.

Se “só os deuses socorrem/ Com seu exemplo aqueles/ Que nada mais pretendem/ Que ir no rio das coisas”[8], que há de ser o rio formado unicamente pelo senso comum, então Penélope, que se põe a nadar contra a imunda maré totalitária que inunda o Brasil, se vê merecedora do tal socorro contido no mote pessoano (muito embora ela não tenha nem sequer um princípio de vestígio de vontade ou pretensão de ser levada pelo fluxo da correnteza do senso comum, não num mar tão agitado): “Penélope não sabe bem por quê, mas tem fé” (HIDALGO, 2022, p. 33). Ela é tão cartesiana, que até gostaria de saber a razão ou a causa da própria fé. Saber isso é exigir racionalidade, que nem sempre se coaduna com a fé. O narrador prossegue: “Uma fé interesseira, pode ser, mas já é um tipo de fé. Acha que quanto mais acredita nos deuses mais eles acreditam nela. E por ela trabalham dobrado [...]” (idem, ibidem, p. 33). Não a vejo como camicase ou ousada, até porque ela se identifica com a leveza e os voos breves e sem afoitices das gaivotas; no entanto, há uma tensão entre o real (externo ao indivíduo) e o ideal (interno e até inconsciente). Na página anterior (p. 32), o próprio narrador já antecipara a explicação para a fé, ainda que essa tal não o exija: “Cada um possui o deus que pode, o deus que consegue escutar. Tem quem o chame de daemon, orixá, santo ou anjo da guarda. Tem quem o chame de alter ego ou supergo”. As palavras daemon e orixá já revelam o sincretismo e a brasilidade da prosa, posto que revelam duas matrizes modelares (ou modeladoras) da sociedade brasileira.

É interessante notar que “o seu deus protetor, o surfista ao lado ou o deus protetor que tomou a forma do surfista ao lado” (HIDALGO, 2022, p. 33) não a convence de desistir do seu rumo. A heroína não é convencida pelo canto da sereia, isto é: não desiste de nadar contra as ondas: ela não segue o fluxo do senso comum, podendo este ser um mar de idiotas (embora pudesse ser um rio de tolices de que alguns pudessem ser tirados pelo exemplo dos deuses, cuja altivez Penélope tem, à maneira dela). Quando ela nota que o surfista ri dela, ela não esmorece. Isso e o “diálogo” entre ele e Penélope fizeram com que eu me lembrasse do Cântico Negro, de José Régio: é como se o surfista dissesse: “Vem por aqui”, e Penélope respondesse: “Não, não vou por aí!”. Pois é: se navegar é preciso, nadar também o é: nadar é preciso, resistir é preciso. O mar e sua força sublime, divina, não a intimidam. Ademais, ele é emblemático na medida em que é o local de origem da vida (além, é claro, de exercer a função escatológica de banheiro planetário, num ciclo possivelmente iniciado no que chamam de sopa primordial).

O romance é enviesado? Tratar-se-ia de um panfleto? Talvez, mas o crítico que apontar o dedo já estará sendo panfletário. É nos capítulos 2º e 3º que fica ainda mais patente a postura crítica e antifascista de Penélope. No 2º, descobrimos uma cidadã que, como toda cidadã, adulta, senhora de si, tem de garantir o ganha-pão, apesar dos incômodos do exterior do apartamento, herança deixada pelos pais, falecidos que são por causa de um trágico acidente de automóvel; no 3º, vemos a arquiteta em ação, porém sua ação é abstrata: se o eu poético de Camões se contenta em amar em pensamento, Penélope não chega a apresentar seus desenhos a alguém que os possa concretizar com tijolos. Vejamos:

            No 2º capítulo, depois de um contraste entre o entorpecimento do sono e o despertar matinal, evidenciado que é na cena em que a protagonista “cai bruscamente do mundo dos sonhos” (p. 41), o narrador registra algumas imagens oníricas geradas pela mente de Penélope em conformidade com o modo como ela se lembra delas, e não no momento em que foram geradas durante o sono. O espaço físico que ocupa, no entanto, não é menos interessante do que o onírico: em seu apartamento, descobrimos Teco, o melhor amigo de Penélope, amigo que perdeu o irmão gêmeo quando este morreu num acidente de carro; também descobrimos os outros amigos dela, que lhe fazem uma visita em virtude do seu 30º aniversário.

Ela e Teco analisam uma favela:

 

Apesar das estruturas frágeis e dos materiais precários, nem sob grandes tempestades essas casas escorregam morro abaixo, pelo menos desde que Teco e Penélope as observam. Imaginam por isso existir toda uma ciência secreta por trás das construções empilhadas. Ou, quem sabe (diz Teco), é Héstia, deusa protetora das moradias, quem as resguarda, pouco ligando se aqueles que as construíram têm ou não inscrição num conselho regional de engenharia [HIDALGO, 2022, p. 52].

 

            Conhecemos um pouco da utopia (utopia, e não ideologia) de Penélope, que remete o leitor a uma reminiscência do seu tempo de universitária, em que arquitetara uma pólis grega urbana e moderna em seu TCC:

 

[...] A partir das necessidades diárias dos moradores da favela, a aluna aplicada teve a ousadia de pensar, projetar e montar a maquete de uma pólis grega a ser lá implantada.

             Ah, Penélope. Trabalhou duro no ambicioso projeto que conservaria o já construído sem derrubar uma só parede, mas acrescentaria: uma ágora para grandes encontros coletivos; uma acrópole lá no alto do morro onde os deuses mais loucos e dionisíacos ficariam à vontade em seus caprichos, mandos e desmandos [HIDALGO, 2022, p. 53].

 

                O sonho da jovem arquiteta foi um sonho em que “a arquitetura servisse de base para um sistema educacional de excelência no estilo da Atenas clássica, calcado nas artes e nos exercícios físicos”[9] (HIDALGO, 2022, p. 54). Afinal, a pólis imaginária dela “deveria ser a síntese do humano e do divino” (idem, ibidem, p. 54).

Aparentemente, apesar do epíteto de Penélope e de toda a sua areté, não percebe a arquiteta que existe a herança da escravidão, de que nos fala Jessé Souza[10]. Ela, que tem uma tara pelo futuro como “a curiosa otimista que ela tenta ser” (HIDALGO, 2022, p. 57), por inadvertência ou por falta de memória, esquece que em outras Cidades-Estados da Grécia a educação não era tão verbal, posto que os espartanos eram mais lacônicos, mais voltados para o corpo e para as artes guerreiras e, portanto, menos prolixos. Além disso, é da Grécia que vem a noção ocidental dominante de escravidão. Com efeito: a “democracia” grega era para poucos, porque poucos eram os cidadãos; entretanto, sabe-se que a relação entre o cidadão e o escravizado grego deu lugar à que havia entre o suserano (o senhor feudal) e o servo (o vassalo); esta, por sua vez, deu lugar à relação que existe entre o patrão e o empregado. (Como chegamos ao empresário de si mesmo, com Uber e tudo, eu não sei, nem Marx, porém os sociólogos e os economistas intelectualmente honestos já devem estar se debruçando sobre a pergunta munidos do novo salto que a humanidade está dando dentro do capitalismo financeiro e do neoliberalismo.) O regime da escravidão foi desenterrado pelos portugueses, que, desprovidos do legado de Viriato, marcaram o Brasil[11] com o atraso de um regime que já tinha deixado de existir na Europa uns mil anos antes de Cabral chegar a esta terra, em que Zumbi dos Palmares, à sua maneira, resistiu à escravidão tanto quanto Viriato resistira, na Lusitânia, à tirania dos romanos. Entretanto, Penélope tem o mérito ou a virtude de alimentar um sonho em que, nas comunidades espoliadas (as favelas), haja o oposto do que são as circunstâncias da infraestrutura (formada que é pelas moradias, pelo transporte, pela distribuição de alimentos e por outras condições materiais de vida) e da superestrutura (com destaque para a educação, uma educação que ela deseja para todos, mas que a classe média conservadora e reacionária, que se considera elite, na verdade abomina; tal classe elogia tal educação da boca para fora, como quem admira um ornamento arquitetônico qualquer). Em suma: ela quer que a barbárie e a espoliação deem lugar aos seus respectivos opostos, mesmo que a cultura grega seja uma das raízes ideológicas de toda a segregação social e espacial, ou, para usar outros termos, a razão cultural (cultural, e não natural) de toda essa desrazão, que gera tanta injustiça. Se tivessem dado ouvido a Sócrates, o homem mais justo da Grécia, os gregos teriam se dado conta de que o antídoto estava no próprio veneno, já que a noção de cidadania poderia ter sido estendida aos escravizados, que obviamente também eram dotados de linguagem, cognição e sentimentos. Em outras palavras: o próprio pensamento grego poderia ter se corrigido, mas, infelizmente, Sócrates, assim como Jesus, pagou um preço muito alto por ser justo e por seu “crime-pensamento”, para citar George Orwell.

Precisamos estabelecer algumas conjecturas a respeito de conceitos que permeiam Penélope dos trópicos e no romance se manifestam explicitamente sem que sejam desnudados. Tais conjecturas merecem uma seção exclusiva, porém, com o espírito de Macunaíma, digo “Ai, que preguiça”, e deixo que críticos mais experientes e mais gabaritados do que eu deem continuidade à tecitura dos fios que estou puxando a partir de agora:

Em primeiro lugar, temos de distinguir utopia de ideologia. Michael Löwy (1987, p. 12) pode esclarecer a diferença:

 

O pensamento utópico é o que aspira a um estado não-existente das relações sociais, o que lhe dá, ao menos potencialmente, um caráter crítico, subversivo, ou mesmo explosivo. O sentido estreito e pejorativo do termo (utopia: sonho imaginário irrealizável) nos parece inoperante, uma vez que apenas o futuro permite que se saiba qual aspiração era ou não “irrealizável”.

 

Sabe-se que, no Antigo Regime da Idade Média, e até mesmo antes dele, na própria Grécia e em outras regiões em que se desenvolveram sociedades da pré-história e da Idade Antiga, era tudo baseado na ordem religiosa e na linhagem sanguínea. A revolução inglesa (cujo fim foi a revolução gloriosa), a independência dos E. U. A., a revolução francesa, a revolução Meiji, a utopia iluminista, tudo isso marcou o início da idade contemporânea por ter rompido com sistemas baseados em linhagem sanguínea e ancestralidade, tão do gosto da aristocracia que se dizia nobre. A burguesia viu que essa ordem “natural” da sociedade, na verdade, era produto da cultura, e portanto era passível de mudança: era injusta. Com efeito: “a burguesia, classe em ascensão, vai se manifestar como uma classe revolucionária” (SAVIANI, 2021, p. 32). Assim, faz a “defesa da igualdade dos homens como um todo e é justamente a partir daí que ela aciona as críticas à nobreza e ao clero” (idem, ibidem, p. 32). Sendo assim, a burguesia, com suas críticas ao sistema aristocrático, não fazia ideologia: pelo contrário, ela criticava a ideologia ao propor a sua própria utopia, que consistia numa sociedade baseada no mérito e na liberdade, e não na ancestralidade. É por esse movimento utópico e revolucionário que a figura do servo dará lugar à figura do cidadão (conquanto, hoje, num fluxo que ironicamente vem do rompimento com o Antigo Regime, o cidadão esteja se tornando cliente do Estado). A ideologia é silenciosa: silencia o que é ao se apresentar como religião, ordem natural das coisas ou até mesmo como “ciência”. Trata-se do status quo, que a burguesia questionou com o movimento iluminista. Com efeito: a ideologia

 

não é apenas a representação imaginária do real para servir ao exercício da dominação em uma sociedade fundada na luta de classes, como não é apenas a inversão imaginária do processo histórico na qual as ideias ocupariam o lugar dos agentes históricos reais. A ideologia, forma específica do imaginário social moderno, é a maneira necessária pela qual os agentes sociais representam para si mesmos o aparecer social, econômico e político, de tal sorte que essa aparência (que não devemos simplesmente tomar como sinônimo de ilusão ou falsidade), por ser o modo imediato e abstrato de manifestação do processo histórico, é o ocultamento ou dissimulação do real. Fundamentalmente, a ideologia é um corpo sistemático de representações e de normas que nos “ensinam” a conhecer e a agir. A sistematicidade e a coerência ideológicas nascem de uma determinação muito precisa: o discurso ideológico é aquele que pretende coincidir com as coisas, anular a diferença entre o pensar, o dizer e o ser e, destarte, engendrar uma lógica da identificação que unifique pensamento, linguagem e realidade para, através dessa lógica, obter a identificação de todos os sujeitos sociais com uma imagem particular universalizada, isto é, a imagem da classe dominante [CHAUÍ, 1997, p. 3].

 

                Penélope não se limita ao modo imediato como os sentidos e a consciência captam a realidade, mas o leitor desavisado pode confundir os gestos dela com atitudes de viés ideológico. É óbvio que a definição que Marilena Chauí confere ao termo ideologia é abrangente, e por isso mesmo ele não anula outros conceitos. Não conhecemos a ideologia, mas apenas manifestações ideológicas (religiões, pseudociências, certas regras de conduta), que nunca são vistas como ideologia. É que ela (a ideologia) sempre silencia o que realmente é. Até que ponto o narrador (que é onisciente), Penélope, Teco e outros personagens quebram tal silêncio?

Eles não devem ser totalmente imunes aos formadores de opinião da mídia, cuja tarefa é justamente a de confirmar os atravessamentos ideológicos (os quais se infiltram na esquerda e na direita sem que disso se deem conta os tais espectros ou ramos políticos, subdivididos em outros ramos ou ramificações). Nenhum deles deve ser totalmente imune (nem os deuses seriam), até porque, de acordo com Marilena Chauí, o mito é suporte de ideologias, em especial o mito fundador, que, por definição, conta a origem de seres e lugares. (Creio que todo mito seja fundador.) Ocorre que, como no jogo infantil do telefone sem fio, o mito[12] é sempre a variante de uma narrativa mais antiga, que é a variante de outra, que veio de outra também... O mito que deu origem às outras variantes, o mito primordial, só sobrevive através das variantes das diferentes gerações, numa reprodução fantasmática. Na verdade, o “primeiro” mito é mais uma variante de um mito mais antigo. No que concerne a um país, sabe-se que Roma tem um ou dois mitos fundadores (Rômulo e Remo, Eneias). No caso do Brasil, o mito fundador é resumido nos termos seguintes (condizentes com a definição de Marilena Chauí): somos um país tropical, com um povo ordeiro, alegre, sem violência. Trata-se, pois, do mito da não-violência brasileira, isto é: de um mito segundo o qual somos, por natureza, um país ou uma população sem violência. Esta, por sua vez, está sempre no outro, um “não”-brasileiro, um cidadão de segunda classe ou uma subgente sem classe. Até que ponto Penélope confirma tal mito fundador? E até que ponto ela o desmente? Quanto mais ela se filiar a ele (mesmo que involuntariamente, por força do silêncio e do poder de convencimento que a ideologia exerce no inconsciente), mais ela confirmará a ideologia; quanto mais ela o desmentir, mais apta ela estará para desmascarar a ideologia.

O narrador não se refere aos neofascistinhas como sendo brasileiros na medida em que não usa a expressão brasileiros neofascistinhas; por outro lado, é dispensável a expressão de dois termos: é óbvio que a fração do povo carnavalizado a que o narrador se refere é uma fração da população brasileira. Para tal fração, violentos são apenas os “subversivos”, os “esquerdopatas”, os “não”-brasileiros. Portanto, Penélope dos trópicos refuta o mito fundador e, consequentemente, refuta a ideologia (nestes particulares, pelo menos). A personagem Penélope tem a virtude de identificar a miséria moral e intelectual do tempo e do espaço em que ela atua. Contudo, como já ficou dito, ela não é totalmente imune à ideologia, nem ao mito: ela é poiesis, mas também é mímesis nas leis da verossimilhança. No 2º capítulo (p. 43, destaques meus), encontramos o seguinte parágrafo:

 

Já nesse pedaço penelopeano de mundo é tudo bem diferente. Parece que o povo já nasce partido, confuso, e tem de se virar, sendo e estando, estando e sendo, na quizumba que é a vida a quarenta 40 graus. É muito provável que o excesso de calor, da exposição ao sol, tenha um dia rachado o verbo, terra seca, fraturando assim a existência nos trópicos (isso explicaria muita maluquice por aí).

 

                Não seria o excerto acima uma reinvenção ou reprodução do mito fundador? Somos um país abençoado por Deus[13], de clima propício para a produção agrícola e para o trabalho braçal e acrítico?

Penélope (a personagem) está longe de ser um Macunaíma de saias, até porque ela tem um caráter muito bem definido; está mais perto de Policarpo Quaresma, de Lima Barreto, muito embora ela vá buscar sua utopia nos gregos antigos, e não nas raízes indígenas e autóctones do Brasil.

Stuart Hall volta-se para a questão de como o “sujeito fragmentado” é colocado em  termos de suas identidades culturais. Admite o autor que as culturas nacionais se constituem numa das principais fontes de identidade cultural. Depois de citar Roger Seruton e Ernest  Gellner, declara que as identidades nacionais, contudo, não são coisas com as quais nós  nascemos, mas são formadas e transformadas no interior da representação (cf. HALL, 2006, p. 50-1). Elas também não são tão homogêneas como as representações fazem crer, e Macunaíma é um herói que representa bem a ausência de homogeneidade e também a falta de originalidade por ser ele uma cópia, conforme o depoimento do próprio Mário de Andrade, que também admite o duplo sentido da falta de caráter do herói Macunaíma no seguinte excerto, tirado do segundo prefácio:

 

E resta a questão da falta de caráter do herói. Falta de caráter no duplo sentido de indivíduo sem caráter moral e sem característico. Está certo. Sem esse pessimismo eu não seria amigo sincero dos meus patrícios. É a sátira dura do livro. Heroísmo de arroubo é fácil de ter [ANDRADE, 2012, p. 168].

 

Penélope, além de ter um caráter bem definido, está mais do que atenta às mazelas do país, o que confirma o que diz Antonio Cândido:

 

A filosofia cósmica e superficial, que alguns adotaram certo momento nas pegadas de Graça Aranha, atribui um significado construtivo, heroico, ao cadinho de raças e culturas localizado numa natureza áspera. Não se precisaria mais dizer e escrever, como no tempo de Bilac ou do conde Afonso Celso, que tudo é aqui belo e risonho: acentuam-se a rudeza, os perigos, os obstáculos da natureza tropical. O mulato e o negro são definitivamente incorporados como temas de estudo, inspiração, exemplo. O primitivismo é agora fonte de beleza e não mais empecilho à elaboração da cultura. Isso, na literatura, na pintura, na música, nas ciências do homem [CÂNDIDO, 2014, p. 126].

 

 

A respeito da estátua der gute Mensch, o homem pretensamente superior: não seria essa estátua uma ekfrasis que confirma um antigo mito brasileiro? Não seria ele o que Mário de Andrade idealizara em Macunaíma? Vejamos: “E estava lindíssimo na Sol da lapa os três manos um loiro um vermelho outro negro, de pé bem erguidos e nus” (ANDRADE, 2012, p. 37). Luciana Hidalgo recorre não só à miscigenação física, mas também à união de personalidades: “Tinham, os meninos Tico e Teco, equilíbrio invejável. Juntos formariam segundo Penélope o humano perfeito (algo próximo do der gute Mensch fantasiado por seu pai)” (2022, p. 48). Contudo, se a falta de caráter representada alegoricamente pelo personagem Macunaíma pode ser entendida tanto como falta de identidade nacional quanto falta de retidão de conduta, então não seria absurdo conferir ao romance de Mário de Andrade uma interpretação segundo a qual os três manos seriam uma tentativa de indicar que a miscigenação seria o caminho para um novo homem nacional entre tantos outros no cenário global: um ser humano evoluído a partir da mistura. O tal homem superior, porém, está mais a favor da eugenia e do racismo, e a protagonista bem o sabe: ela “sempre se espanta com esse ideal de homem superior, tara finíssima daquela civilização a.C. tão ilustrada e bem-intencionada. Se soubessem no que o tal ideal de homem superior daria [...]” (HIDALGO, 2022, p. 92). Sabe-se bem que o super-homem foi a base para a barbárie, para o massacre de vários povos, e Penélope sabe bem o perigo que representa tal ideal de “homem superior”. E Luciana Hidalgo (2022, p. 94) se aproxima de Mário de Andrade no excerto abaixo:

 

Detalhes do homem superior vêm logo ao papel enquanto o rosto é enigma. Ela imagina uma profusão de feições: do índio, do branco, do preto, do mameluco, do mulato, do cafuzo. Assim, em série, na ordem da chegada de cada um a esse continente ⸺ e dos acasalamentos sucessivos entre eles ao longo dos séculos (eles, os ancestrais de Penélope).

 

            Teco, cujo irmão gêmeo é falecido, é quem presenteia Penélope com um exemplar de Paideia, livro que a mãe dela lia para a menina.

            Ela

 

constata que zumbis, alienígenas, lobisomens, vampiros e outras bestas futuristas imaginárias nem são necessários em totalitarismo algum, só no cinema. As bestas humanas de sempre dão conta do recado entre iguais, encarnando e encenando tragicamente violências, injustiças e atrocidades. E pensar que tudo isso acontece num país-tropical-abençoado-por-deus à luz de um sol impiedoso que não pode ser mais o culpado de toda a barbárie. Não mesmo [HIDALGO, 2022, p. 60].

 

                O trecho acima invoca o mito fundador. A personagem está ciente dos cordiais-mestiços-carnavalizados, manipulados pelos bárbaros-corruptos-inclementes (cf. HIDALGO, 2022, p. 60).

            É no 2º capítulo que conhecemos os cordiais que compõem o grupo de amigos da protagonista, que os recebe no apartamento em virtude do seu 30º aniversário, além de sabermos de Daniel, seu tio, que é mais uma referência do que um personagem. Conhecemos: Heitor, um militar autoritário e abandonado pela família, a qual foi vítima do autoritarismo de Heitor; Ana e Joana, dadas ao esoterismo; o pai de Teco.

            É no 3º capítulo que descobrimos um novo cenário (e possivelmente um 3º núcleo): a biblioteca universitária em que Penélope começa a trabalhar graças à intervenção de Rita. (Esta, por sua vez, acaba sendo um tipo de pós-criação, já que é uma personagem que acaba revelando um pouco mais do passado de Penélope.) Trata-se da biblioteca da universidade onde os pais da balzaquiana lecionavam. Ela estava cansada dos desvios de função a que tinha de se sujeitar para manter um ganha-pão (seus pais lhe deixaram apenas um apartamento, de modo que não é rica nem privilegiada). É nessa biblioteca que ela desenha a Biblioteca Ideal. Estaríamos diante de uma influência exercida por Jorge Luis Borges? (autor do conto A biblioteca de Babel):

 

Para que sua Biblioteca Ideal não carregue esse peso expressionista, decide incluir no projeto um grande vitral de cores claras. De novo apaga tudo. Opta por uma enorme claraboia cobrindo toda a parte de cima do salão de leitura, parede a parede, de um vidro translúcido que convide o sol a incidir feito faca nos leitores. De modo a lembrá-los permanentemente em que trópico estão, ou seja, de onde vêm e até onde podem ir. Ela quer seus Leitores Ideais inundados de luminosidade e calor [HIDALGO, 2022, p. 81].

 

            Como ex-auxiliar de uma biblioteca pública destruída no bairro onde cresci, não posso deixar de sentir extrema simpatia por Penélope e sua Biblioteca Ideal. Ao recusar uma arquitetura europeia, ela exalta as cores autóctones[14]. Talvez o sonho de Penélope ilustre bem esse complexo de vira-lata contra o qual ela luta: vendo que a arquitetura não é adequada para o Brasil, ela começa a trabalhar num projeto só seu, embora chegue a se trair ao decidir incluir um grande vitral, marca de uma arquitetura gótica e, portanto, europeia. A luz, é claro, simboliza um iluminismo pessoal na eterna luta contra as trevas da ignorância. São Miguel venceu o Diabo, mas o Iluminismo ainda não chegou ao Brasil. Essa opção pela luz solar também desmente um mito segundo o qual o sol atrapalharia a leitura, atividade à qual não seríamos (nós, os brasileiros) chegados devido ao mesmo sol, “que peca/ Só quando, em vez de criar, seca” (PESSOA, 1986, p. 188-9).

            É comovente que, dentro do 3º capítulo, mencione-se o “Seu” Eduardo, “que ganha uma miséria, mas na dúvida e na fé, na alegria e no desânimo, na cortesia e na injustiça, na dignidade e na cordialidade, continua a sorrir” (HIDALGO, 2022, p. 94). É ele que se aproxima do homem superior. Também é emocionante a homenagem à Marielle Franco na página 95.

            É no 3º capítulo que conhecemos o condomínio e os condôminos de Penélope. Nessa parte, conhecemos “Seu” José e Severino. Este vinga-se da classe média ao se emancipar com um rito que consistia em expressar raiva danificando carros e deixando registros do uso da razão. Pode-se dizer que Severino está para Penélope dos trópicos assim como Dona Plácida está para Memórias Póstumas de Brás Cubas (2021, p. 213), com a diferença de que ele consegue emancipar-se ou libertar-se da opressão de gente tão mesquinha.

            No 4º capítulo ocorre uma manifestação contra o neofascismo em forma de bolsonarismo. Uma mulher negra (que bem pode ser mais uma homenagem a Marielle Franco), de vestido vermelho, é perseguida por um policial; daí o título tauromaquia.

É no 5º capítulo que sabemos que Penélope participou da manifestação, e que tanto ela quanto a moça de vermelho foram covardemente agredidas pela polícia, que abusou de sua autoridade “como quem chuta cachorro morto” (HIDALGO, 2022, p. 111). Penélope se recupera do spray de pimenta na moradia de Lucas, seu namorado passageiro ou efêmero. Ele filmou tudo e praticamente abandonou a protagonista na correria. (Se o trágico mito de Édipo carrega uma lição moral para prevenir incesto, o spray de pimenta deve ter ensinado a Penélope que não deve confiar em qualquer um que se diga revolucionário.) Fez questão de publicar o vídeo na Internet sem saber se isso afetaria o emprego da namorada. Só atraiu o interesse de Penélope por ler O Capital, um critério de escolha sugerido pelo próprio Teco, ainda que este antipatize com aquele.

            Decididamente o 5º capítulo é o de que menos gosto: Lucas é só mais um ativista de Iphone que bem poderia ser um representante da classe média pequeno-burguesa que se diz progressista, mesmo que seja filho de assalariado. Isso, porém, não é o único incômodo: o narrador descreve o coito com metáforas que invocam conceitos marxistas. Isso é o mesmo que politizar o sexo, ou é o mesmo que sexualizar a política. Essa moeda de duas faces é enganosa: é ouro de tolo: não favorece a luta contra os totalitarismos. Não estamos diante da politização da arte, que seria um escudo contra a estetização da política: estamos diante de um tipo de politização que une Damares e as feministas de esquerda, já que tanto um lado quanto o outro politizam o sexo e reprimem-no. Ora, o sexo é instinto primário, de modo que tanto Lucas (homem culto de esquerda) quanto Antônio (homem inculto, alienado e inocentemente útil à direita) servem aos mesmos fins da procriação. Se o narrador informasse que ambos os homens são ruins de cama, ou que ambos são bons enquanto um é melhor, sem recorrer a imagens de caráter político, eu veria de um narrador um registro limpo, livre de politização desnecessária.

            Quando lê passagens de O Capital, Lucas revela que não está em dia com as formas mais recentes de capitalismo. Parece que ele não percebe que o pensamento de Marx tem de ser criticado, analisado sob a luz dos dias de hoje. Se tivesse lido Thomas Piketty (2014, p. 17), saberia isto: “Marx cometeu o erro de não explorar todas as possibilidades de que dispunha”. Lucas não reconhece os erros e os acertos de Marx, cujo trabalho é, sim, relevante até aos dias de hoje, principalmente quando se leva em conta o alto patamar de riqueza privada que se observa desde os anos 1970 e 1980 nos países ricos (cf. PIKETTY, 2014, p. 18). O aumento de salário, os direitos que as lutas trabalhistas conquistaram, o erro que foi o totalitarismo de Stálin, nada disso Lucas observa: ignora (ou finge ignorar) tudo isso. Também ignora (ou finge ignorar) que o ócio é fundamental para que o trabalhador seja um consumidor (como quando, por exemplo, se diverte, anestesiado, no shopping)[15]. Em última análise, Lucas está para o romance Penélope dos trópicos assim como Marechal está para Rio-Paris-Rio (e Marechal só não é um ativista de Iphone de classe média pequeno-burguesa porque não havia a tecnologia nos anos 1960, nos quais se estabelece a diegese de Rio-Paris-Rio).

            A meu ver, dois poemas de Fernando Pessoa descrevem perfeitamente bem Lucas. O primeiro deles começa assim (1986, p. 2020):

 

ONTEM À TARDE um homem das cidades

Falava à porta da estalagem.

Falava comigo também.

Falava da justiça e da luta para haver justiça

E dos operários que sofrem,

E do trabalho constante, e dos que têm fome,

E dos ricos, que só têm costas para isso.

 

O tal homem é hipócrita: quer apenas um pretexto para externar a raiva, que não combina com o comportamento estoico do eu-poético. (O estoicismo há de ser a forma mais antiga do que hoje chamam popularmente de “de-boísmo”; na linguagem vulgar, ficar “de boas” é fica tranquilo, sereno.) O homem revoltado repete o gesto em outra ocasião, narrada no segundo poema, uma sequência da história do primeiro (1986, p. 233):

 

ONTEM O PREGADOR de verdades dele

Falou outra vez comigo.

Falou do sofrimento das classes que trabalham

(Não do das pessoas que sofrem, que é afinal quem sofre).

Falou da injustiça de uns terem dinheiro,

E de outros terem fome, que não sei se é fome de comer,

Ou se é só fome da sobremesa alheia.

Falou de tudo quanto pudesse fazê-lo zangar-se.

 

            É tão leviano o gesto de expor a imagem de Penélope, que o leitor chega a antipatizar com ele na maior parte do tempo. Teco acompanha as imagens num bar, e chega a sofrer de indigestão, uma reação escatológica e aceitável. Lucas não perguntou se Penélope queria ser filmada enquanto era atacada covardemente pela polícia. Não é por acaso que Teco antipatiza com Lucas, que é muito diferente de tio Daniel; são até quase opostos. Quanto à repercussão, Penélope se tornou “heroína nacional. Quer dizer, heroína de uma parcela menor da nação, já que a parcela maior dessa mesma nação elegeu democraticamente o governo de extrema direita que aí está [...]” (HIDALGO, 2022, p. 130). Mas ela “ri de volta num desprezo total pelos insultos” (idem, ibidem, p. 131); e meio que se vinga (e o leitor ético também) dos detratores que a insultam, conforme este registro: “O que ela pensa deles é muito pior do que aquilo que pensam dela” (idem, ibidem, p. 131).

            Surge uma tensão quando Teco vai buscar Penélope na moradia de Lucas: “este divide pessoas em duas espécies: humanos demais e humanos de menos” (p. 135); aquele “divide os humanos em duas espécies: humanoides e cretinoides” (p. 135). Na persuasão de que “um intelectual que não pensa além dos interesses da sua própria classe não é um intelectual” (HIDALGO, 2022, p. 134), Lucas, é claro, não considera Teco, amigo de infância de Penélope, um intelectual. (Curiosamente, para Gramsci, o intelectual com poder de convencimento é aquele que convence o público a aceitar o senso comum ou a ordem “natural” das coisas. Trata-se do intelectual orgânico, também conhecido como formador de opinião. Atores, padres, pastores evangélicos, youtuberes, cantores, atores, atrizes ⸺ todos eles são intelectuais orgânicos na medida em que podem influenciar a opinião e o comportamento de muitas e muitas pessoas; não é por acaso que, acatando o esquema behaviorista do estímilo-resposta-reforço, a indústria publicitária contrata famosos que possam falar bem deste ou daquele produto. Podem ser capitães do mato do poder, mas não usam chicote: usam prestígio, influência e, em alguns casos, usam o diploma. Muitos economistas defendem o neoliberalismo e o ataque à previdência fiando-se no prestígio que lhes confere o diploma. Teco, mesmo que não saia dos interesses de sua vidinha de classe média, pelo menos não defende o capital: não pratica a desonestidade intelectual.)

            Os três humanos (Lucas, Teco e Penélope) deixam o ambiente tenso: “O duo é saudável; o trio, nocivo” (HIDALGO, 2022, p. 137). Acredito que ela se traia depois (como veremos mais adiante).

            No 6º capítulo, Penélope vai a um parque, um jardim botânico, na esperança de encontrar Frederico Olavo, que vê o pai (um deputado de extrema direita) ser preso por corrupção. Antes, porém, de descobrir que o primeiro é filho do segundo, ela tece conjecturas penelopeanas. “Esquerda que é esquerda”, diz o narrador (2022, p. 150), “leva flor pra polícia e exige julgamento digno pro cidadão”. Sim, mas qual é a esquerda a que se refere o narrador? A extrema esquerda? A esquerda das pautas identitárias? A esquerda da cultura totalitária do cancelamento? A esquerda defensora da coalizão em forma de Estado do Bem-Estar Social e Social Democracia? A propósito: em nenhum excerto estão as expressões coalizão, Estado do Bem-Estar Social, Social Democracia e neoliberalismo. Penélope chega a fazer uma analogia entre o absolutismo e as formigas, exploradas pela rainha, o que é coerente com seu caráter. (Não a censuro, é claro, porque eu mesmo fiz isso em 2021 numa dessas rodas de conversa. Até a natureza pode ser politizada de vez em quando.)

            Talvez a cena mais marcante (depois daquela em que duas turistas cantam uma música infantil) seja aquela em que o clima fica mais hostil do ponto de vista da temperatura mesmo: “o sol do meio-dia e o calor úmido do verão, sem uma brisa sequer, a sufocam” (HIDALGO, 2022, p. 152). Fico a me perguntar: a sensação de desconforto seria causada apenas pelo clima ou pela temperatura? Talvez sim, mas isso se coaduna com a violência que Penélope e tantos outros brasileiros sofreram na mão do bolsonarismo. De qualquer forma,

 

Na atualidade da literatura brasileira, vista em imagens violentas e chocantes, simbólicas e às vezes herméticas, ilustrada pela putrefação e estagnação dos charcos e dos pântanos, onde os pássaros fogem dos miasmas e as árvores, receosas, se debruçam sobre si mesmas, o Dr. Cláudio sente falta de uma verdadeira obra de arte [SANTIAGO, 1978, p. 94-5].

 

                Talvez os objetos grotescos mencionados no comentário acima, relativo ao personagem Dr. Cláudio, do romance O Ateneu, de Raul Pompéia, resuma um pouco das imagens tropicais que Penélope tanto analisa. A barbárie bolsonarista está “numa paisagem fúnebre e doentia” (SANTIAGO, 1978, p. 95); contudo, Penélope mantém intacta a sua razão, que ela usa maravilhosamente bem[16].

            Para o alívio da protagonista, não aparece Frederico Olavo (um dos usuários da biblioteca onde Penélope trabalha), o que a poupa da presença de outro neofascista.

            No 7º capítulo, Penélope finalmente conhece Theo, professor de Grego que lidera um grupo de gregófilos. Apesar da enorme atração que possa exercer a premissa em que estão calcadas as reuniões, não se trata de uma seita. Também não é um grupo de autoajuda, conquanto seus integrantes se consolem e busquem apoio uns nos outros diante das agruras causadas pelo bolsonarismo e pelas outras distopias totalitárias mundo afora. Com efeito:

 

Quanto mais leem, pensam, discutem, mais especulam. Penélope está deslumbrada. Idealizam uma nova organização onde o Estado fincaria raízes intelectuais, políticas e éticas na filosofia, na poesia, na música e em corpos sólidos, guerreiramente exercitados para guerras que se zeus-quiser nunca serão necessárias [HIDALGO, 2022, p. 167].

 

            Entretanto, parece que aqui há um pequeno arranhão que talvez possa atingir a coerência interna do romance: Sabemos que Penélope considera bom o duo; rejeita o trio por ser nocivo. Acontece que isso cai por terra quando “De repente enxerga uma saída de emergência ao país: a união do caráter ético-intelectual de Theo à revolução social-braçal de Lucas e ao espírito crítico-esculachado de Teco. Do meio-termo sairá a luta justa” (HIDALGO, 2022, p. 168). Mas há mais: a protagonista cita de cor uma frase de Paideia: “A trindade grega do poeta, do homem de Estado e do sábio encarna a mais alta direção de uma nação” (p. 174).

            Rita, a bibliotecária, informa à Penélope que a biblioteca fora invadida e danificada por criminosos, que no patrimônio picharam símbolos nazistas, slogans racistas e ameaças de morte (p. 177). É óbvio que o ataque ao patrimônio é um ataque ao pensamento crítico, que os bolsonaristas odeiam com todas as forças. Felizmente, Rita conseguiu assegurar o emprego de Penélope. Ela, conhecedora que é das ideias de Freud, sabe que “num linchamento sabe-se mais sobre o linchador do que sobre o linchado” (2022, p. 169).

            No 8º capítulo descobrimos que Theo e Penélope formam um casal. Amam-se enquanto uma pandemia gera o extermínio de milhões. É óbvio que se trata de uma questão global, e não nacional. Theo cogita de levá-la à Grécia. Ela, porém, não quer “voos mais altos, distantes da costa” (p. 186). Diz o narrador: “Talvez por intuir que mortais levem vidas igualmente bestas em outras paragens, outras línguas; partir pra quê?” (p. 186). Isso pode não ser muito otimista para quem tenta ser otimista, mas poderia muito bem ser um tapa de pelica no complexo de vira-lata de tantos brasileiros.

            No 9º e último capítulo, descobrimos que o vendedor de mate é o “Seu” Eduardo, que agora tem sob sua tutela um sobrinho. “A percepção do abismo social”, diz o narrador (p. 197), “que separa o vendedor de mate dos frequentadores dessa praia dói diariamente em Penélope”. Teco zomba disso:

 

É disso que Teco mais debocha nela e em Theo. Na areia onde tantos se divertem, vaidosos em suas silhuetas, festeiros, anestesiados, o casal pensa na próxima reunião gregófila, agora em endereços alternados para fugir à perseguição de neofascistas pirados. Os dois continuam a crer em reuniões, manifestações, ações, apesar da frustração por não mudarem nada (ainda) [HIDALGO, 2022, p. 197].

 

Os gregófilos são espionados e perseguidos. Meu trecho favorito é este (páginas 198 e 199):

 

[...] quando o delegado incluiu Platão na lista de subversivos alegando a sua intenção em fundar uma República comunista no país, a imprensa ridicularizou e ninguém mais levou a sério. De acordo com os autos, o filósofo grego era um estrangeiro perigoso a ser imediatamente deportado. Nunca foi encontrado; escafedeu-se o tal.

 

                Só, o trecho acima já vale o tempo dedicado à leitura. Se por uma longínqua hipótese fosse ruim todo o restante da prosa, o excerto que aqui fica compensaria tudo. Penélope, é claro, não desiste: “A ideia de Penélope é promover uma barulhenta ode à democracia, ao direito de pensar, ao dever de dizer. E tudo isso porque, é sabido, os paraidiotas odeiam livros e quem os lê” (HIDALGO, 2022, p. 199-200)[17]. Penélope está muito consciente de que

 

O jogo de gato e rato corre solto na dark web, na web oficial, nas redes sociais, nas universidades, nos ambientes de trabalho. O governo nem precisa gastar dinheiro em caçadas a opositores já que uma tropa de idiotas civis, ou paraidiotas (segundo Teco), faz o serviço de graça por pura idiotice pessoal, engrossada pela idiotice coletiva [HIDALGO, 2022, p. 198].

 

            Theo compara a Penelope obscura, ave nativa que meio que invoca Gonçalves Dias, com a Penélope humana (p. 201). Estão em risco de extinção ambas as Penélopes. Depois que ela observa a linha do horizonte, que “não mais desloca nem pontilha nem tremula” (HIDALGO, 2022, p. 202), passamos a descobrir mais tecidos do pensamento penelopeano. A tecelã, é claro, nunca perde o fio de Ariadne, nem se deixa intimidar por minotauros bolsonaristas. No mar ou na terra, ela resiste com valentia: é inabalável sua determinação em não se curvar e em não esmorecer. Isso faz dela uma personagem plana? (sem transformação interior). Talvez sim, mas ela já tinha tudo o que era preciso. A única transformação que a aproxima de uma personagem esférica é o fato de ela e Theo firmarem um namoro: estava sozinha (ou até solitária) havia bastante tempo. É simbólico que o nome de seu amado seja esse. Ela finalmente se harmoniza com as relações entre a imanência e a transcendência, e isso fica evidente na descrição da casa de máquinas, que vê na linha do horizonte, e “que abriga todas as rodas das fortunas” (HIDALGO, 2022, p. 203). “Na visão visionária de Penélope”, diz o narrador (p. 203), “cada mortal existe simultaneamente lá cá acolá”. (Tal máquina não foi ilustrada pelo Sr. Mauro Bitar, infelizmente.) Os deuses, segundo essa visão, assistem aos mortais, “assim como humanos assistem às suas tvs com maior ou menor interesse” (idem, ibidem, p. 203). Os humanos sisifam, isto é: fazem um trabalho de Sísifo. Realmente, quem combate o mal torna a combatê-lo, e isso porque quem o pratica torna a praticá-lo: “Era importante [...] lutar, e recomeçar a lutar, e continuar a lutar, porque somente assim o mal poderia ser acuado, embora jamais erradicado” (ROWLING, 2005, p. 504). Isso, é claro, é cansativo; não é por acaso que

 

Penélope gostaria que a humanidade caranguejasse menos, pegasse uma reta, seguisse uma planilha evolutiva sem retrocesso. Assim como gostaria de ver o Museu das Emoções Singelas, a Biblioteca Ideal, a pólis na favela em frente ao seu apartamento.

             Infelizmente a sua Penelópolis nunca sairá da maquete [HIDALGO, 2022, p. 205].

 

                Ela é, afinal, uma arquiteta, e não uma engenheira; por isso é coerente que ela faça mais abstrações e aposte em gestos simples, sem repercussões nas redes sociais. Talvez este seja um segundo traço de mudança interior, porém não a considero uma personagem esférica, embora, é claro, ela gire em torno do próprio eixo. É giratória (por assim dizer), porém é plana: não vejo uma transformação radical, isto é: uma mudança drástica nas raízes. Se isso acontecesse, ela poderia abandonar seus escrúpulos e ignorar o mal por comodismo ⸺ e decididamente ela não faz isso. Como o mal e todo o resto são cíclicos, não são necessários guias nem bússolas, conforme a última frase do romance: “As grandes (penelopescas) aventuras só existem para mostrar que o ponto de chegada é exatamente o da partida” (HIDALGO, 2022, p. 206).

            A cena final é a de uma reunião na praia: Penélope, Theo e os amigos estão reunidos. Juntos, contemplam o pôr do sol.

            O que a protagonista vê no mar do último capítulo (p. 204) é um mar calmo, num estado que é praticamente o oposto do estado do mar do primeiro capítulo. Nas águas consegue enxergar fatos históricos; os animais que devoram e os que são devorados; a escravidão que marcou o Brasil; Atlas... Isso tudo meio que se coaduna com o trecho da canção de Débora Blando, que inseri nesta resenha como epígrafe. Essas livres associações entre o mar, o sol, a evolução, a história da humanidade, a vida e os ciclos que isso tudo forma me levam à canção. Todavia, no que concerne à situação específica do bolsonarismo e a todos os gestos de resistência que Penélope demonstra, é preciso admitir que ela é “alguém que resiste”, “alguém que diz não”, conforme os versos do poeta português Manuel Alegre. Claro está que a própria autora também resiste. Com efeito: “há [...] casos em que a biografia do autor acha-se em relação pertinente com sua obra. Apenas, para ser utilizável, seria preciso que esta relação fosse dada como um dos traços da própria obra” (TODOROV, 2017, p. 160). Contudo, a via de projeção biográfica não há de sobrepujar a via historiográfica: as duas se completam, porém é esta, e não aquela, que salta aos olhos do crítico na hora de escolher os métodos de análise e serve melhor ao propósito de compreender o romance, que conforta o leitor que está triste por causa dos vários signos de ruína que temos testemunhado nos mais recentes seis anos (2016-2022).

 

Da forma e dos procedimentos estéticos

 

Já antecipei o debate desta seção na primeira, em que menciono os fatores externos à Literatura e o abstracionismo. Antes, porém, que passemos ao exame de algumas evidências da qualidade da forma, vejamos a divisão da estrutura em nove capítulos (que, ao contrário dos outros romances da autora, contam com títulos, e que talvez sejam uma alusão às nove musas[18]):

 

            entre gaivotas abutres e humanos [p. 11];

            um corpo terrestre em rotações inebriantes ao redor do próprio eixo [p. 39];

            aquela que pretende e é pretendida [p. 77];

            tauromaquia [p. 109];

            das revoluções que percutem em corpos como poemas [p. 117];

            círculos concêntricos num redemoinho de rosas [p. 143];

            os gregófilos [p. 161];

            penelopeia [p. 181];

            ποσειδων [Poseidon] [p. 189].

 

Os núcleos (ou cenários) são estes: a praia, o apartamento de Penélope, a biblioteca, o interior do condomínio de Penélope, as ruas da manifestação, a casa de janelas azuis (onde se reúnem os gregófilos) e a moradia de Lucas. O narrador, é claro, só estará onde ela estiver (com exceção do trecho em que Severino está celebrando intimamente a própria liberdade na praia). Trata-se de um narrador observador onisciente, em 3ª pessoa (e talvez ligeiramente intruso).

Hidalgo há de ser o oposto de Coelho Neto (o qual, aliás, eu nunca li), o parnasiano da prosa, mas, como seguidora de Lima Barreto, ela concretiza o ideário parnasiano de Olavo Bilac, a saber: o de limar e sofrer sem que isso transpareça no texto final, em que não há artifícios, nem exibicionismo, nem beletrismo, nem barroquismo.

Segundo a professora Olga Kempinska (2012, p. 170), o poema em prosa foi criado por Aloysius Bertrand. No poema em prosa, não há propriamente uma narrativa, mas nele se “encena a manifestação de uma subjetividade” (idem, ibidem, p. 170).

Penélope (o romance), apesar de estar longe daquela coloquialidade ultrajante de Mário de Andrade e seu Macunaíma (a prosa, e não o personagem), atinge um registro meio vulgar, de que são provas os termos bunda e putas. Isso, é claro, deve-se à onisciência do narrador, que, mesmo sendo uma terceira pessoa, registra opiniões de uma primeira. Uma vez que, dentro da polifonia formada por vozes de personagens de classe média, o narrador onisciente só diz o que permite a autora, obediente que é ao princípio da verossimilhança, surge essa coloquialidade, que não é leviana nem escandalosa, mas não chega a ser agradável o tempo todo. (Por que a classe média só conhece os níveis mais vulgares de registro linguístico? Falta repertório, apesar do dinheiro que sai do bolso dela para cair no bolso de escolas particulares.)

Mesmo sendo leve e fina, com períodos simples, sem preciosismo, o fato é que a pontuação deixa a desejar aqui e ali. Os autores que deixam de usar sinais de notação sintática de propósito devem fazer isso na persuasão de que estão sendo modernos e progressistas, porém acabam sendo medievais ou antiquados[19], porquanto a notação sintática seja um avanço da tecnologia mais preciosa da humanidade, a saber: a escrita. Os antigos e os medievais não usavam vírgulas, porque não as conheciam. No caso de Luciana, chega a ser bastante curioso isso: há nela uma francofilia. Pois bem: segundo a Arte de pontuar (1953, p. 13), de Alexandre Passos, pode ser atribuída aos franceses a evolução da notação sintática: “Os Românticos brasileiros e portugueses, pelos seus principais representantes, porfiavam em bem aplicar os sinais de pontuação, talvez por influência da leitura de livros franceses [...]”. O leitor acaba tendo de prover o que lhe foi negado pela autora, como quem compra um aparelho eletrônico com peças por encaixar. Parece que, em nome do estranhamento, que consiste em fazer com que o leitor lance um novo olhar para o objeto mimetizado na literatura, como se pela primeira vez o visse, os literatos passaram a adotar e os críticos literários passaram a adorar certas liberdades estilísticas, que não são licenças poéticas, pois que nem sempre embelezam o escrito. Nova Crítica, impressionismo crítico, estruturalismo, formalismo russo ⸺ qual dessas correntes considera bonito a supressão de sinais? Parece que os críticos escutaram o galo, mas não escutaram bem onde, e certos autores também ⸺ e Saramago é um deles. É como se, em nome de uma liberdade individual, não importasse mais um legado preservado por gramáticos e filólogos. O máximo que pode a autora brasileira fazer é, “na medida exata em que há uma Literatura Brasileira” (FILHO, 1972, p. 285), usar “uma Língua Literária Brasileira” (idem, ibidem, p. 285), embora, é claro, essa questão estilística seja intertextual em virtude da influência que autores exercem uns sobre os outros em determinada época (daí as expressões estilo de época e escola de época, tão caras aos Estudos Literários), sem restrição territorial. A língua, do ponto de vista estrutural, é a mesma; o uso nacional brasileiro não se afasta tanto do de Saramago: muitos modernos e pós-modernos insistem em desprezar o uso de certos sinais de pontuação. Se idioma e alfabeto são coisas distintas (com o alfabeto latino é possível, por exemplo, escrever palavras de qualquer idioma), então a notação sintática também é “independente” de qualquer idioma, posto que ela se internacionalizou; contudo, é filologicamente preservada pela gramática de cada idioma. Que novidades existem? Não há nada novo sob o sol. Até os discursos diretos, que formam os diálogos, ficam na mão do narrador: não há travessões. Vejamos alguns excertos em que os sinais de pontuação, inseridos entre colchetes, ficam por conta do leitor:

 

Só aos poucos discerne quem é quem[,] o que é o quê [p. 99].

 

O que é real[,]o que é irreal: importância pouca [p. 102].

 

Ao que Joana chama Ana[,]que chama Clara[,]que chama Bernardo[,]que chama Heitor[,]que chama Rafael[,]que chama um monte de gente [p. 102].

 

            E andou[,]andou[,]andou[,], cada vez mais rápido, contra tudo[,]contra todos, braços pra frente[,]pra trás[,]pros lados [p. 123].

 

            Não vou censurar quem disser que estou sendo mísero e mesquinho por me incomodar com ninharias de notação sintática, até porque o critério de Luciana Hidalgo é rítmico e estilístico, e não gramatical, nem filológico. Apenas chamo a atenção para um fenômeno que José Saramago, de certo modo, também manifestava e me incomoda.

            Por falar em sintaxe, há uma questão de regência nominal no início do capítulo tauromaquia (p. 111): “Na justiça, na injustiça, contra ou a favor do Estado”. Um purista “corrigiria” a frase; assim: “Na justiça, na injustiça, contra o Estado ou a favor dele”.

            Entretanto, um poema em prosa não pode se prender tão só aos aspectos acima, de modo que se tornam fundamentais e até imperativos o ritmo e a sonoridade. O leitor fica satisfeito com a expressão Teco do boteco e outros bons achados, tais como quiasmos, aliterações e onomatopeias (que estão inseridos aqui e ali, assim como alguns versos): “Deuses que vivem de apostas num bando de mortais vulneráveis como se assistissem a uma corrida de pangarés capengas. Num dia protegem os valentes e castigam os covardes, noutro dia protegem os covardes e castigam os valentes” (HIDALGO, 2022, p. 18, destaques meus). Mas há mais:

 

A ventania varre incautos do céu, da areia, do mar [p. 19].

 

[...] dos mitos gregos, e eles são muitos, restam farrapos míticos [p. 19].

 

Para complicar, a sua língua ligeira e leviana é presa [p. 20].

 

[...] a menina se viu obrigada a aceitar a atenção de todo e qualquer vizinho solidário à sua solidão [p. 63].

 

            Mesmo que possa ser reducionista, existe um conceito de ekphrasis segundo o qual ela é a descrição pura e simples de seres, objetos e acontecimentos, conforme Álvaro Gomes (2015, p. 20). Pois bem: encontramos em Penélope dos trópicos (o romance) a descrição de bibliotecas e paisagens urbanas e naturais, além da descrição do homem superior. A linha do horizonte desenhada acaba sendo uma luva, assim como a rosa dos ventos, que aparece duas vezes. Tratar-se-ia de experimentos concretistas ou neoconcretistas? Tudo isso, é claro, cai muito bem na história de uma personagem que é, afinal, uma desenhista.

            (Os detalhes físicos de Penélope não são apresentados todos de uma vez, tais como a tatuagem e o fato de ser adunco o nariz: meio que ficam espalhados nos capítulos.)

            A imagética, é claro, não deixa a desejar (e falar dela é falar de ekphrasis). Uma das imagens mais instigantes e assustadoras está no 2º capítulo, em que a protagonista aceita, a contragosto contido, um abraço de Heitor, o militar machista que colhe os frutos amargos e adoecedores de sua ideologia funesta:

 

Ela não gosta. E se aceita o gesto desajeitado é só porque a remete ao abraço atemporal do universo. Numa leitura recente, Penélope entendeu que o espaço sideral é gelatinoso, molengo, e se inclina, e se curva, e se debruça sobre a Terra envolvendo todos os seres num abraço cheio de escuridão [HIDALGO, 2022, p. 65, destaques meus].

 

                O polissindetismo à maneira de Bilac reforça o sentido que o excerto acima produz. O teor sombrio, no entanto, nem sempre é a tônica quando se trata de descrever o binômio formado por opressores e oprimidos. A catarse proporcionada pela libertação de Severino, por exemplo, chega ao ápice na passagem abaixo:

 

O fiapo de lua minguante no céu escuro de início reforça seu pessimismo, mas logo traz à memória a namorada de adolescência deixada pra trás. E a jura feita: estivessem onde estivessem, caso vissem no céu aquela lua fininha pendurada no vazio, lá se imaginariam sentados juntos, lado a lado, pernas balançantes na escuridão. Dez anos de cidade haviam apagado a lua no céu e a jura na terra [HIDALGO, 2022, p. 103].

 

            Severino não esqueceu o sonho. Sua imagem sob a lua e tantas outras sempre se coadunam com a forma que ganham.

 

Considerações finais

 

Com relação ao mito fundador (e não apenas à intertextualidade explícita com a literatura e a mitologia gregas), Penélope pode ser um no cravo e outro na ferradura. Ela reforça esse mito em alguns pontos, mas também o desmente em outros. Paradoxal? Sim, mas a própria Luciana, em entrevista ao Bondelê (a partir dos 26 minutos e 51 segundos do vídeo), já pontuou que escreve para conviver com o mundo e para entendê-lo, o que gera uma certa conformação. Ela mesma admite, de viva voz, que nisso existe um paradoxo. Sendo Penélope seu alter ego, nada mais coerente.

Sou muito grato por Penélope existir, embora ela seja ficção. É um consolo num país tão arruinado. Resta saber se, fora dos trópicos, existem outras Penélopes quase extintas no mundo editorial.

 

(Guarapari, ES. De novembro de 2022 a 2 de janeiro de 2023, 2º dia do 3º mandato de Lula. Os cães ladram, a caravana passa. Revisão mais recente: 4 de novembro de 2023.)

 

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[1] Licenciado em Letras (Português e Literaturas) pela UFF, mestre em Estudos Literários pela UERJ e professor efetivo de duas redes públicas. Currículo na Plataforma Lattes: <http://lattes.cnpq.br/0328708771235302>.

 

[2] Seria interessantíssimo comparar rascunhos ou esboços de Luciana Hidalgo com o texto definitivo. Seria fascinante ler correspondências trocadas entre ela e Jorge Bastos, Sérgio Nazar David e Mauro Bitar. Na verdade, esta sugestão vale para outros autores. A Ecdótica, também conhecida como Crítica Textual, é a ciência que examina esses e outros aspectos da produção literária, conquanto ela se debruce sobre textos muito, muito mais antigos. Isso, pelo que ouvi dizer, pode não ser possível no caso de Machado de Assis, o bruxo do Cosme Velho: o autor de Dom Casmurro queimou papéis num caldeirão, então não é difícil imaginar que, entre os papéis, houvesse rascunhos de seus escritos literários. De qualquer forma, conforme os ensinamentos das professoras Marlene Gomes Mendes e Silvana dos Santos Ambrosoli, a Ecdótica tenta preservar os textos literários, principalmente os mais antigos, como restauradores ou curadores de obras de arte, já que os textos podem ser adulterados com o passar do tempo.

 

[3] No 3º capítulo de Penélope dos trópicos, encontramos uma crítica à situação editorial do Brasil: “Editoras nesse país, assim como seus animais exóticos, vivem em extinção” (HIDALGO, 2022, p. 86).

 

[4] O que eu vejo nos Estudos Linguísticos é, por mais que neguem os seus mais proeminentes e famosos divulgadores, um infame e obsceno apoio ao esvaziamento do currículo. Hoje, a BNCC, que é uma vergonha, é a institucionalização da desliteraturização do currículo. Não há mais a disciplina Literatura, uma barbárie que é o extremo oposto daquela de que cogitou Roland Barthes. Não sei se há reducionismo dos postulados de Antônio Marcuschi e Bakhtin, mas o fato é que o currículo se apega a uma nomenclatura de gêneros textuais e faz dela um fim, e não um meio. Assim, confirma a banalização dos gêneros prosaicos. Se Platão queria que da pólis fossem expulsos os poetas, os linguistas, muitos dos quais nunca lecionaram no chão da sala de aula dos ensinos fundamental e médio, razão por que não têm a empiria nem propriedade para falar dela (e aqui eu me remeto à dialética que se dá entre a experiência e a teoria tal como Kant a concebeu antes mesmo de Hegel), conseguem, talvez involuntariamente, reafirmar o esvaziamento do currículo em nome de uma falsa inclusão e reforçar a desliteraturização. Memes e anúncios de biroscas são mais importantes para a BNCC e para os linguistas do que os textos dos grandes autores, que eram gênios. Curiosamente, não me lembro de os professores da educação básica terem sido consultados para a elaboração da última BNCC, feita em 2016 com o parecer de quem acha que pode dizer o que se pode e o que não se pode ensinar nas aulas de Português e “Literatura” dos ensinos fundamental e médio, embora muitos cientistas, chegados que são ao oba-oba pedagógico, nunca tenham dado aulas na educação básica. Também não me lembro de ter lido pareceres de mestres e doutores em Estudos Literários: eu só me lembro do parecer de quem está nos Estudos Linguísticos, e não nos Estudos Literários. E por que eu deveria esperar o oposto ou algo diferente? Literatura não é mais uma disciplina: está embutida nas aulas de Português que nem uma peça de roupa enfiada de qualquer jeito numa gaveta. Obviamente vão dizer, talvez com base em Morin e outros pedagogistas, que isso evita a fragmentação do saber e promove a “interdisciplinaridade” ou a “transdisciplinaridade” e certas “competências”. Em suma: vão sempre usar baboseiras pedagógicas que racionalizem, num gesto inerente ao mecanismo de defesa, os delírios e as burrices da pedagogia moderna. A Pedagogia e os Estudos Linguísticos, presos a delírios e tolices, não se dão conta de nada disso, e ai de quem ousar criticar esse estado de coisas. Os Estudos Culturais, por sua vez, tentam absorver a Teoria da Literatura. É preciso fazer ecoar uma voz dissonante contra esse despautério. Pergunto: A quem interessa o silenciamento da Literatura? Resposta: Trata-se de uma determinação de Estado, que, em verdade, é uma determinação de mercado. Mas há muito mais: Na ânsia de promover uma suposta inclusão social, num exercício cínico e escolanovista de otimismo pedagógico, alteram o currículo propedêutico e todos os outros currículos (um deles é o currículo oculto), porém promovem tão só uma inclusão social às avessas, que aparentemente é feita em nome do direito à educação. Na verdade, é tudo feito em nome de verbas públicas, boa parte das quais vai para o bolso de editoras e empresas de equipamentos escolares, e de promoções nos quadros dos magistérios públicos, atitude análoga à de Eichmann, de que nos fala Hannah Arendt. Os ativistas que defendem a “inclusão” e a “pluralidade”, muitos dos quais nunca lecionaram nos ensinos fundamental e médio ou simplesmente nunca lecionaram em nível nenhum de ensino, pregam, sem base científica, que a educação é a base de tudo. Ora, a educação está na superestrutura, de que fala Marx. Ela não é a base da sociedade: a sociedade é que é a base da educação. Num país em que escorre esgoto a céu aberto, é impossível que a justiça social e a democracia comecem pela escola. Menos com menos dá menos.

[5] Talvez Diógenes esteja sendo duro demais. Afinal, o conto Pausa sugere que o escapismo tem tudo que ver com a literatura: cada um de nós tem a necessidade de sonhar acordado. O conto é de Moacyr Scliar, e está no livro O carnaval dos animais, mas pode ser lido no Curso de Literatura de Língua Portuguesa (2001, p. 64-5), de Ulisses Infante.

 

[6] De acordo com Francisco Achcar (sem data, p. XII), “Policarpo não se limita àqueles traços que o classificam como personagem plana (os hábitos, a ideia fixa, as reações padronizadas [sic] a personagem chamada plana é estática, não evolui, não tem ‘profundidade’ psicológica)”. Francisco Achcar (doravante F. A.) não considera o protagonista do romance Triste Fim de Policarpo Quaresma como sendo personagem plana. Diz F. A. (idem, ibidem, p. XII): “ele [Policarpo] se caracteriza também por uma complexidade progressiva, embora tímida, que o faz, em certa medida, igualmente uma personagem esférica (personagem que evolui, cuja psicologia é dinâmica)”.

[7] O Brasil é um caso sério. Em se plantando, tudo dá (já dizia Pero Vaz de Caminha). Segundo Ana Maria Dietrich (2007, p. 107), autora de Nazismo tropical? O partido nazista no Brasil, o partido nazista (1928-1938) fazia parte de uma rede de filiais instaladas em 83 países do mundo e comandadas pela Organização do Partido Nazista no Exterior, cuja sede ficava em Berlim. “O grupo instalado no Brasil”, declara Dietrich (2007, p. 119), “teve a maior célula fora da Alemanha com 2900 integrantes sendo estruturado de acordo com regras e diretrizes do modelo organizacional do III Reich”. No dizer da autora, esse dado numérico é o que mais chama a atenção. O maior número de partidários do Nazismo fora da Alemanha estava no Brasil (DIETRICH, 2007, p. 119), no tempo da Era Vargas, marcada por dois momentos: o da Revolução de 1930 e o Estado Novo. Este era de caráter totalitarista, e a Lei Monstro, a Lei de Segurança Nacional, teria sido relevante para o cotidiano da comunidade alemã. Portanto, houve (e ainda há) um nazismo tupiniquim. Realmente, o que se plantou aqui foi como uma maldição. Como diz Érico Verissimo (1996, p. 21), que parodia a máxima de Pero Vaz de Caminha de que, em se plantando, tudo dá no Brasil: “a terra é tão boa... Sim, de um modo que era quase uma maldição”.

 

[8] Versos de Ricardo Reis, um dos heterônimos de Fernando Pessoa.

[9] Chamo a atenção, mais uma vez, para a escravidão grega. Dermeval Saviani (2021, p. 31), na verdade, é quem faz isso: “[...] o homem, o ser humano, era identificado com o homem livre; o escravo não era considerado ser humano, consequentemente a essência humana só era realizada nos homens livres. Então, o problema do escravismo, sobre o qual se assentava a produção da sociedade grega, fica descartado e nem era um problema do ponto de vista filosófico-pedagógico”. Mas não nos iludamos: o ensino tradicional, que ganhou bases sólidas depois da Revolução Industrial, mesmo com inspirações nas matrizes clássicas gregas, não é arcaico, nem medieval, e foi desenvolvido por Comênio e Herbart, de modo que ele não tem compromisso nenhum com a exclusão nem com o escravismo. Pelo contrário. Infelizmente, o escolanovismo (movimento Escola Nova), que é uma corrente iniciada nos E. U. A. nos anos 1920 e apoiada pelos liberais de direita, chegou ao Brasil nos anos 1930 e caluniou sistematicamente a imagem do ensino tradicional, baseado na excelência. Mas Saviani nos deixa prevenidos: “Ora, [...] essa crença que a Escola Nova propaga é totalmente falsa. Com efeito, o chamado ensino tradicional não é pré-científico e muito menos medieval. Esse ensino tradicional, que predomina ainda hoje nas escolas, constituiu-se após a Revolução industrial e implantou-se nos chamados sistemas nacionais de ensino [...]” (2021, p. 35). O mesmo autor também discorre sobre três teses, das quais destaco esta: “Do caráter revolucionário da pedagogia da essência (pedagogia tradicional) e do caráter reacionário da pedagogia da existência (pedagogia nova)”. Ele também revela outra tese: “quando menos se falou em democracia no interior da escola, mais ela esteve articulada com a construção de uma ordem democrática; e quando mais se falou em democracia no interior da escola, menos ela foi democrática”. Isso porque a pedagogia moderna, com fumos de inclusão, diz que é a favor da inclusão e das classes populares, mas a verdade é que ela faz o oposto de tudo isso. O ensino tradicional, ao contrário, tinha o compromisso de romper com a ordem aristocrática da linhagem sanguínea, mesmo que na Grécia antiga, com exceção de Sócrates, o ensino fosse para poucos e excluísse os escravizados, já que poucos tinham ócio (e escola, etimologicamente, é o lugar de ócio). Pode-se dizer que, assim como territórios foram invadidos e colonizados com o pretexto de que precisavam de progresso, a escola tradicional foi invadida e colonizada pelo escolanovismo, que até hoje, cem anos depois de seu nascimento, estende as garras e manipula o pensamento de quase todos, desde o mais bolsonarista dos professores e dos pesquisadores da Pedagogia até a mentalidade do mais freiriano dos pedagogistas. É que o pensamento ideológico, além de não ser obrigatoriamente científico, é silencioso: não revela que é ideologia: está sempre silenciando tal fato.

 

[10] “O passado que nos domina”, afirma o sociólogo Jessé Souza (2017, p. 151), “não é a continuidade com o Portugal pré-moderno que nos legaria a corrupção só do Estado, como o culturalismo dominante até hoje entre nós nos diz.  Nosso passado intocado até hoje, precisamente por seu esquecimento, é o do escravismo.  Do escravismo nós herdamos o desprezo e o ódio covarde pelas classes populares, que tornaram impossível uma sociedade minimamente igualitária como a europeia.  Foi precisamente porque a Europa não teve escravidão que Norbert Elias pôde construir o processo civilizatório europeu a partir da ruptura com a escravidão da antiguidade.”

 

[11] “Em várias regiões do país”, declara Roberto Catelli (2013, p. 250-1), “existe a figura conhecida como ‘gato’.  Ele vai à procura de homens e mulheres desempregados ou miseráveis que buscam meios de sustento, propondo-lhes salários, moradia e alimentação. Uma vez no local de trabalho — em geral, fazendas ou beneficiadoras de produtos agrícolas —, essas pessoas devem cumprir longa jornada de trabalho, muito superior às 44 horas semanais legalmente estabelecidas. Cada alimento que o trabalhador recebe é debitado dos seus rendimentos. Ao final do mês, em geral, sua dívida é maior que o salário combinado. A partir daí, o trabalhador é proibido de sair do estabelecimento de trabalho até que pague a dívida.  Mas como pagar se todo mês o salário é menor que o devido?  Eis o mecanismo de escravização: a dívida. O trabalhador fica preso por dever ao proprietário, e a violência é o recurso utilizado para mantê-lo no local.”

[12] Segundo o professor André Alonso (2012, p. 2), a palavra mito vem do grego μυθος (mythos). “O termo grego significa”, diz o professor (2012, p. 2), “primeiramente, ‘palavra’, ‘discurso’”. Ele prossegue ao dizer: “Pode também significar uma discussão, uma conversa, um conselho. É só posteriormente que é utilizado com o sentido de ‘lenda’ ou ‘fábula’, significado esse que é precisamente o que retivemos para o termo ‘mito’” (2012, p. 2).

[13] Na aula magna do curso “Como lidar com os efeitos psicossociais da violência?”, Marilena Chauí recita versos do poema A pátria, de Olavo Bilac: “Ama, com fé e orgulho, a terra em que nasceste!/ Criança! não verás nenhum país como este!/ Olha que céu! que mar! que rios! que floresta!/ A Natureza, aqui, perpetuamente em festa [...]”. O poema está no livro Poesias infantis.

[14] É interessantíssimo que Penélope abra mão do vitral, marca da arquitetura gótica. Com efeito: “quando os autores renascentistas trataram de maneira desdenhosa a obra de seus predecessores, [...] tal estilo foi chamado de gótico. Os arcos ogivais, as abóbadas de nervuras e a decoração elaborada tinham uma aparência tão bárbara para os renascentistas que estes, de forma pejorativa, disseram que tal arte só pudera ter sido inventada pelos godos, daí o emprego do termo” (MENON, 2007, p. 20). Em outras palavras (numa analogia): assim como brasileiros falam “Isso é coisa de índio” ou “Isso é vandalismo”, os renascentistas deviam falar “Isso é coisa de gótico!” ou “Isso é coisa dos godos!”. Penélope, é claro, não é “renascentista”, isto é: não é contra os vitrais por ser contra o gótico, porém quer valorizar um traço nativo. Isso equivale a fazer o oposto do que fizeram os renascentistas.

[15] Talvez Olgária Matos possa esclarecer isso.

[16] Precisamos ter cuidado com o Sr. Silviano Santiago, pois, em seu livro, fica dito que o clima tropical é “pouco propício para as elocubrações mentais” (SANTIAGO, 1978, p. 95).

[17] Isso tudo vai ao encontro do que diz Jessé Souza no livro A elite do atraso (2017, p. 104): “O trabalho midiático de criminalização da esquerda e da própria ideia de igualdade foi aqui o ponto principal por essa arregimentação de setores expressivos das próprias classes populares e não apenas de seu público cativo da classe média”.

 

[18] Nove eram as musas: Clio, musa da História; Euterpe, da música; Talia, musa da festa; Melpomene, cantora da tragédia; Terpsícore, da lírica coral; Polímnia, musa da retórica; Urânia, musa da astronomia; Calíope, da poesia épica. Apolo, cuja carruagem carrega o sol, é o patrono delas.

[19] Por mais velho ou obsoleto que seja o livro Arte de pontuar, ele, assim como tantas referências antigas, tem o mérito de lembrar que é preciso rever as referências bibliográficas (preferencialmente de dez em dez anos). Além disso, o olhar crítico sempre saberá distinguir as afirmações que se sustentam das que desabam sobre areia. De qualquer forma, precisamos saber quem são os antigos. Está claro que na Antiguidade e na Idade Média não havia pontuação. Contudo, Alexandre Passos nos adverte: “Nem todos os antigos pontuavam mal, embora nem todos os escritores tomassem a sério a pontuação; do memo modo que muitos deles colocavam a ideia ou fundo acima da forma, por isso mesmo que o sentido de algumas frases até hoje está em suspenso” (1953, p. 13). O escrúpulo epistemológico do autor é filológico.